sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Gustaf Munch-Petersen



                                          POEMAS DE GUSTAF MUNCH-PETERSEN


O PAÍS DE MAIS ABAIXO

                        Para fannie hurst

Oh que grande sorte
que grande sorte têm
os que nasceram no país de mais abaixo –
vê-los-eis em toda a parte
vagar
amar
chorar –
vão a toda a parte
mas nas suas mãos levam pequenas coisas
do país de mais abaixo –

- - -

oh maior que qualquer outro país
mais fabuloso
é o país de mais abaixo –
a terra torce-se para cima
em ponta –
e para baixo
para fora vai caindo
o sangue pesado e vivo
e penetra no país de mais abaixo

- - -

delgados pés prudentes
e membros raquíticos
e o ar é puro
pelos ascendentes caminhos abertos –
nas veias fechadas
arde o anseio daqueles
que nasceram lá em cima sob o céu

mas oh
deveríeis ir ao país de mais abaixo –!
oh deveríeis conhecer a gente do país de mais abaixo,
onde o sangue corre livremente entre todos –
homens –
mulheres –
crianças –
onde a alegria e o desespero e o amor
pesados e maduros
resplandecem em todas as suas cores sobre a terra
oh a terra é misteriosa como uma face
no país de mais abaixo –

- - -

vede-os por toda a parte
vagar
amar
chorar –
os seus rostos estão fechados
e dentro das suas almas há terra
do país de mais abaixo –

det inderste land, 1933



INVERNO

Bramam as tormentas –
o inverno faz a sua guerra –
o mar vagabundeia
ao largo das costas –
o céu segue-o
das alturas –
as casinhas amontoam-se
assustadas contra a terra –
o gélido olho da lua
olha fixamente através do muro da noite
os homens que andam a recolher carvão –

19 digit, 193



NÃO ME FALEIS

Silêncio
silêncio –
não me faleis –!

muito muito prudentemente
devo andar,
se quero encontrar algo –
e devo andar só
se quero encontrar algo –
não encontrei nada no entanto –
não encontrei
a minha casa
o meu amor
nem os meus campos –
devem estar
lá onde eu não estive no entanto –
já caminhei muito tempo –
talvez me reste muito caminho
por andar no entanto –

e tenho que andar só
e com terrível cuidado
tenho que andar
se quero encontrar algo –
mas tenho que encontrar
um lugar onde estar –

tenho que ter um lar em algum sítio
pois sei
que tenho a minha casa
e os meus campos em alguma parte –
o meu amor não pode estar a esperar-me até sempre
já caminhei muito tempo
não me faleis –
se ainda tenho que seguir andando muito tempo
talvez seja demasiado tarde –

silêncio – silêncio!
tenho que
encontrar o meu lar –

Samlede skrifter II, 1967



UMA PEQUENA CANÇÃO

Matei o deus de mary ann –
mary ann teme o meu deus –
amo mary ann –
quando a ardente negrura me aparece defronte
deixo mary ann
ao seu amor por mim –

quando sobe o pálido sol
com os seus olhos azuis matinalmente húmidos,
volto para mary ann
com o meu amor por ela –
pobre mary ann –
e pobre de mim –
mas temos um grande coração
juntos –
mary ann e eu –

Samlede skrifter II, 1967



O MILAGRE ESPECIAL

Todas as noites estava cansado,
e todos os dias fazia o que lhe diziam –
e sem armar escândalo
chegou aos trinta anos –
e bastante só –

e uma noite não tinha sono,
e naquela noite pensou
que algo
poderia acontecer-lhe –
especialmente –

e cedo na manhã
roubou cinco libras
e apanhou uma boa borracheira
com uma mulher que conhecia –
o dia, a noite e o dia seguinte

e tarde aquela noite
detiveram-no –
em silêncio, sem escândalo –
e depois de um tempo voltou –
mas oh –!

todas as noites dormia
e durante o dia fazia o que lhe diziam –
e junto com a mulher que conhecia
chegou sem escândalo aos
sessenta anos –
quando se falava da vida,
sorria –

Samlede skrifter II, 1967



Versão minha - © Amadeu Baptista
 
 
 




Gustaf Munch-Petersen (1912-1938). Nasceu em Copenhagen, onde estudou na  Universidade daquela cidade. Pintor e poeta surrealista. Estreou-se em 1932. Escreveu os seus poemas em dinamarquês, inglês e sueco. Para defender a República Espanhola alistou-se nas Brigadas Internacionais e morreu na batalha do Ebro. Alguma da sua poesia foi publicada postumamente.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Nicolau Saião


                                               NICOLAU SAIÃO, POETA CONVIDADO


                                                                  5 POEMAS INÉDITOS



ATÉ AO FIM

Quando entrei na sala vi num relance que o meu demónio 
estava deitado
A boca entreaberta, um resto de baba no queixo de quem 
Dorme justamente como um anjo.
A janela pouco cerrada e o sofá chegado 
à plena luz
A manta já antiga azul e amarela roçava o chão como se
Tivesse havido por ali discreta borracheira dominical. 
Congeminei
Que ele antes de reentrar vindo do etéreo passara 
por uma tasca ou que 
aceitara a oferta toma lá dá cá de um qualquer maltrapilho
Cheio àquelas horas entradotas de uma modesta
fraternidade bebedora.
Olhando bem via-se-lhe contudo no rosto 
uma vaga felicidade
Dizendo melhor uma centelha de contentamento 
ou alegria, ou
assim como que a sensação de quem vira o mundo 
no seu lugar real
Vamos a ver, no fundo a lonjura dominava
Como se visse o cavalheiro por uns binóculos ao contrário
Cheirava um pouco a flores e vagamente 
a desodorizante
Um livro tombara no chão, ficara à espera 
aberto anquilosado
Quando abri a porta da cozinha vi sobre 
o fogão um tacho com
Uma iguaria qualquer com que se entretivera 
certamente antes de cair no leito vencido
talvez pelas canseiras das últimas horas.
Se minha mãe estivesse viva decerto 
lhe teria aplicado um raspanete
Uma expressão em dialecto se calhar 
um tabefe levezinho. O meu pai
Poria na cara aquele sorriso suave dos dias sem idade
Lá fora estrepitavam ruídos da cidade barulhenta
Contos do dia e da noite, o irresistível 
fascínio do desconhecido.
Sentei-me, a angústia apoderara-se de mim. Uma frase estranha 
Revirava-se-me na cabeça. 
Quando olhei pela janela o horizonte 
pareceu-me uma linha ténue.
Mais tarde, pensei, falaríamos a preceito. Ou antes
por entre dentes eu diria talvez
coisas sobre a grande aurora ou então sobre a memória
Sibilina dos sobreviventes imutáveis.



AQUI, ALI, ACOLÁ

Não se vai longe correndo
não se vai longe
a carne é fraca
o vento quebra ao nosso lado   as visões  os sinais
as presenças de gente e de lugares  de grandes 
árvores solitárias
de portas que se abrem e de rostos sobre o seu 
rodapé   de suas cicatrizes na madeira em que se bate
não se vai longe
dói por dentro a memória
o desejo
os grandes passos  as passadas ferindo lume
chispas mordentes de cavalo ou de avestruz no deserto
nas ruas imprecisas
mortalmente atentas
Não
não se vai longe
o peito ressoa
a mão grita
o olho soluça
e é por dentro um motor sufocando nas bermas
o nosso crescimento implume
Por isso é necessário
e vivente como andar de coruja ou leopardo
como rapariga apaixonada num café de vila remota
ir devagar
passo a passo
devagarinho como um ribeiro na pradaria   entre
árvores de fruto e plantas campestres
pé ante pé
com os dedos adejando  com os lábios
rebrilhando
e soletrar fragmentos de uma palavra serena
sonora
breve
Ir devagar
como se adormecêssemos
como se habitássemos um bosque
como se de novo chegássemos à primeira luz.



VISLUMBRE

No bote, os polícias jazem amorosos
no virar da semana
com as suas adoradas em passeio
naquele jardim com o lago meio adormecido
em que depois de remarem, como os cisnes do parque
como a lua se tivesse caído na água
ficam no vazio, olhando os bancos e a relva 
dessas horas em que as ramagens cobrem
os corpos de quem descansa e os ausentes
comem sua merenda debaixo de outras folhas
em diferentes lugares.
No barco ou ao balcão do quiosque eles sustêm
na sua mão a mão de alguém que os prolonga.
Onde estão as crianças e a música? Quando não é manhã
os barcos vogam
em busca de um horizonte em que haja noite
dentro mesmo dos corpos, até do peito fendido
em que eu contemplo as silhuetas seculares
quase no fim dos bosques onde depois se amam
e se interrogam por um nada
bocejando aqui e além.
Tocas com essa mão a primeira palavra. E notas 
no céu negro figuras como havia
na tua adolescência sussurrante. Agora
olhas ao pé do castelo um pequenino embrulho
e foi há muito tempo que o sentiste
uma e outra hora e ainda uma outra hora, essas
que de repente param e tu sorris
na evidencia que te chama. E dizes, como se nada fosse
- Ouve, jovem polícia, o teu barco quedou-se ali
e por entre as pálpebras semicerradas
o teu amor esvoaça. Oito nove de noventa e seis
repara bem
o taumaturgo testa a tua sede. O teu raro momento
tão plácido e completo como um hall sem ninguém.
Vamos embora, meu Senhor. 
Seco e magro como um vislumbre
que estimula os quartos ao derredor
andas de continente em continente
e os risos aumentam e aumenta
o choro ao canto do jardim ensolarado.
Uma palavra em calão e uma reza, uma reza
saindo sem que o soubessem alegremente das trevas.



ANUNCIAÇÃO

As mulheres do vento   parado como um planeta extinto
as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas
entre mim e o céu
Entram pela minha boca e censuram-me docemente
Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa
Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes
Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais
Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar
A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal 
a morrer.



LEVANTAMENTO DE RANCHO

O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos
Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia
Doce como os sonhos o meu sargento desculpe
Mas é tão estúpido tão escalabitano tão
A norte de Bafatá ou mesmo 
Castelo Branco o meu sargento é um nabo
Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha
O meu coronel desculpe mas tive de o abater
O gajo não entendia que os sonhos eram os outros
Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias
E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores
Há um ar em silencio extremamente melancólico
O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura
De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a
Já havia muitos meses que me lavava a roupa
Junto ao mercado do Pixiguiti   chorava
Era sofrida como uma mulher
Doce e tão calada como um objecto partido
O meu capitão desculpe mas tive que o abater
É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos
O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão
De serviço   o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras
O meu major desculpe mas era chegada a hora 
Tantos anos depois ficaram todos em fila
A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado
Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda
De modo que foi assim   fiz levantamento de memórias
E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar
Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão
Ficaram todos em fila pois então
Mesmo que em sonhos   e agora estes não são
De ovos e farinha como almejava nesse tempo
Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar
Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba
E já agora que estamos com a mão na outra massa
Que é como quem diz com a pata na G3
O meu general vá à fava   palavra de civil tão sem galões
O meu general é um nabo como na caserna se dizia.


(do livro inédito 'Escrita e o seu Contrário')


© Nicolau Saião
 
 
 
 


Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Reside no agregado populacional de Atalaião.
Participou em mostras de Arte Postal em diversos países. Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O armário de Midas” (Moçambique, 2005), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar).
No Brasil foi editada em finais de 2006 pela Ed. Escrituras uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) e, em 2011 o tomo em prosa “As vozes ausentes”. Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002) que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).
Tem colaborado em espaços culturais de vários países: “Saudade”, “Bíblia”, “Bicicleta”, “Callipolle”, “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Revista 365”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “DiVersos” (Portugal/Bruxelas), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Espacio/EspaçoEscrito”, “A Xanela”(Espanha), “La Lupe”, “Decires”(Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile), “Blanco Móvil” (México), “Mele” (Honolulu).

 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Mais 14 Fragmentos de Veneza




Caffé Paradiso: um vaso azul com uma avenca em cima de uma mesa
avisa que a partir deste bosque que brilha todos os nós de angústia
se desatam.

A inconfundível eternidade da água.
A excepcional eternidade da música.


A exemplo de Mantegna, estamos em Veneza
e somos trespassados por arte despedida,
tal como S. Sebastião.


Ah, o sirocco, esse vento que chega com uma moldura negra
para assediar Veneza – tal como o amor, como vimos
em Thomas Mann, via Visconti, o sirocco
é uma experiência religiosa que, no caso,
a música de Mahler ampliou.


Há-de ser possível tocar o chão de San Giorgio Maggiore com a polpa
dos dedos para que neles permaneçam as impressões digitais de Veneza.


Carnaval de Veneza: animais sumptuosos
que nos obrigam a respirar
a sombra.


Do que não reclamamos: esta paixão de obscura
volúpia sob o impulso silente dos putti
que do tecto do quarto nos observam
como se fôssemos anjos
em queda livre.


Poucas árvores em Veneza, mas não há
mais densa floresta do que esta.


Não me favorece o escrutínio da ausência,
nem as noites mal dormidas – o meu coração
abatido sabe que participou em assaltos,
mas que tudo perdeu na extensa deriva da batalha,
sem mais poder fazer do que regressar ao livro
para erguer a decifração do enigma,
tal como aconteceu com Veneza, que tudo desbaratou
sobre a paixão, ainda que nenhuma ruína patenteie
e o seu amor pertença a um reino inefável.


Adormeces enfeitiçada pelo sortilégio de Veneza
enquanto velo o que de ilegível  dorme em ti.


Disse Napoleão que seria um Átila para Veneza.
Mais cedo do que tarde os bárbaros acabam por chegar
para cobrir de luto o sortilégio das cúpulas douradas
e dos beijos fogosos.


A haver uma fractura poética que me sobressalte neste lugar
é saber como milhares de náufragos foram despojados
das suas túnicas brancas para que oscilassem os pallazos
sobre as águas mansas.


Numa parede da gare marítima de Veneza,
vi escrito: Te odio, Tomasino! Também num muro
de Ballymurphy Seamus Heaney leu:
«Haverá vida antes da morte?». Ah, os poetas
andam engalfihados numa luta amorosa
e o mundo cai em arrasadoras ciladas.


A despedida anuncia-se por um céu branco
e ondas intempestivas no casco do navio.
Fico na amurada a ver Veneza a fundir-se
aos meus empolgamentos, sem saber
se fiz esta viagem pelo rescaldo esmagador
dos nossos devaneios ou se o que aconteceu
foi apenas a breve pulsação de um delírio.
Ah, talvez o indizível não seja mais que este
estremecimento a que de longe aceno
pelas regras indeclináveis do abandono,
que nos retém, ainda.


Inédito - © (poemas e fotos) Amadeu Baptista
 
 
 

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Inger Hagerup


                                             POEMAS DE INGER HAGERUP


A PESTE

I

Levantemos uma bandeira negra sobre os países
e desenhemos uma cruz na nossa porta,
pois uma grande peste assola a terra.
Percorreu a árida terra de África sobre pés amarelados
    pela febre.
Desfilou pelas ruas de Berlim
ao compasso de tambores e música de vento.
Nos conventos de Espanha disse como os anciãos
o deslizante rosário das metralhadoras,
e nos arredores de Madrid escondeu o seu terrível rosto
numa máscara de gás último modelo.
Atirou sobre as suas empestadas feridas as capa do ditador
e cobriu o seu ventre inchado com uma casula vermelha de bispo.
Um dia nomearam-na catedrática em Jena.
E ela falou com uma boca bicuda e astuta atrás dos seus livros.
Em Xangai enforcou trezentos escravos que tinham pedido pão
e quando teve oportunidade de arrancar as unhas
    a um velho judeu
largou à gargalhada.
Olhos os seres humanos com olhos sanguinolentos
ferindo-os com a cegueira,
para não cultivem cereais na terra,
mas granadas nas fábricas,
para que não construam cidades levantadas até ao céu,
mas as incendeiem,
para que não saúdem o seu irmão,
mas o matem
– – –

     Levantemos uma bandeira negra sobre os países
e desenhemos uma cruz na nossa porta,
por causa da grande peste.

Jeg gikk meg vill i skogene, 1939



AS REDES DE FERRO

Três irmãs pálidas
dançam sem som à luz da aurora boreal.
Três irmãs pálidas
com vestidos de prata.
Onde põem os seus pontiagudos tacões
morre a última flor,
cai a folhagem amarelenta retinindo no chão,
quebram-se as valentes espadas das espigas.

Três irmãs pálidas
dançam sem som à luz da aurora boreal.
Na manhã seguinte restam as caudas dos seus vestidos de prata
sobre os prados orvalhados.


Jeg gikk meg vill i skogene, 1939



EU SOU O POEMA

Sou o poema que ninguém escreveu
Sou a carta que sempre se queimou.

Sou o caminho que ninguém tomou
e o som que nunca soou.

Sou a oração dos lábios mudos
Sou o filho de uma mulher não nascida,

uma corda que nenhuma mão estendeu
uma fogueira que ninguém acendeu.

Acordai-me! Redimi-me! Levantai-me já
da terra e disponha, de espírito e corpo e alma!

Mas quando rezo, só respostas incompletas.
Eu sou as coisas que não ocorrem nunca.

Jeg gikk meg vill i skogene, 1939




ODE ÁS VERDURAS

Pesadamente carregados como guerreiros vitoriosos
voltamos diariamente do nosso horto a casa.
Às verdes hordas das couves liquidámos,
separámos as suas grossas cabeças do corpo com uma aguçada
    faca
e colocámo-las em cestos.
Ao risonho leque das cenouras arrancámo-lo cuidadosamente,
e logo recolhemos os sangrentos cachos dos tomates.
Sob férteis bosques de folhas denteadas
explodiram os pepinos como peludos dedos de crianças.
Agora nadam em recipientes de vidro
para oferecerem aos nossos paladares avinagrada doçura no inverno.
Das flores de borboleta do feijão verde surgem
arqueados barcos vikings com minúsculos rosário de escudos na
    borda
(vagamente camuflados sob a tensa pele da bainha das ervilhas).
As frias cores da couve-flor, elegantemente apertadas como o ramalhete
nupcial dos anos noventa
misturam-se com redondas cebolinhas e minúsculos pepinos no frasco.
O nabo ergue-se a meio caminho da terra
no seu afã de servir e fastidiosa riqueza vitamínica.
Deixamo-los sem cerimónia no canto mais escuro do sótão
onde saberemos encontrá-lo de novo
quando os dias se fizerem curtos e pardacentos.
Mas as batatas, férteis como um chinês do condado da fome,
recolhemo-las aos centos, sim, aos milhares, da terra do nosso horto.
Porque a batata, esse curtido proletário dos nossos sótãos,
ressuscita a cada dia dourada e fumegante
convertida no sólido centro
à volta do qual se unem o arenque salgado e o jarro de água
sobre a toalha da nossa mesa.

Flukten til Amerika, 1942



 A MINHA AMADA CHEGOU A CASA ONTEM

A minha amada chegou a casa ontem
com brancos flocos de neve no cabelo.

A minha amada não é minha.
De outro é o seu coração.

Também a minha amada foi enganada.
Amargamente ontem a noite chorava

no sonho, quando me disse:
meu amor, quero-te tanto!

Videre, 1945



CREIO

Eu creio em muitas coisas. No sangue. No fogo.
Creio em caminhos onde não é possível perdermo-nos.
Creio nos sonhos dos que pertencemos.
Caminho às cegas. Não me leves a casa.
Deixa que a noite me guie sempre até adiante.
Em algum lugar na escuridão há uma porta entreaberta.
Em algum lugar num limite entre corpo e alma,
um lugar onde o próprio tempo diz detém-te
– lá onde talvez ardesse o meu coração?

Não me escutes. Todas as minhas palavras
são perigosos profetas, falsas pistas.
Sou muito diferente do que tu acreditas.

Videre, 1945



TAMBÉM O AMOR TEM QUE MORRER

Mata-me, disse ela, porque de qualquer modo
nos possui a morte.
Antes que ser abandonada pela vida
prefiro eu abandoná-la a ela.

O amor também tem que morrer
e não voltar jamais.
Meu amado, deixa-me ir em frente,
deixa-me morrer antes do amor.

Den syvende natt, 1947



INSTANTE

Como uma última súplica estende-se a mão dela
entre os copos chamando a dele.
No mais há bastante silêncio entre os dois,
silêncio bastante após a sua última valsa.
O coração sabe-o já, ainda que a mão deixe de suplicar:
Tão inapelável como a própria morta
é quando um corpo deixa de amar
e se despede sem palavras de outro corpo.

Sånn vil du ha meg, 1950



O MENINO LOUCO

Ao menino louco da casa ao lado
tinham-no preso. À noite ouvíamo-lo
a uivar. E eu sussurrava à minha almofada:
Obrigado, meu Deus! Ao menos eu estou livre.

O menino louco já não grita.
No entanto o grito acorda-me
nas noites negras sem estrelas.
Então não é o menino. Sou eu.

Fra hjertets krater, 1964



DETALHE DE UMA PAISAGEM INVISÍVEL DE NOVEMBRO

No meio do país de névoa que se chama eu
há um velho sinal de trânsito sem caminho.

Ali está assinalando com a sua carcomida flecha
até aos pântanos e quilómetros de neblina.

Em vão procuro nomes e sinais.
Nevões e chuvas tudo apagaram.

Ali esteve uma vez o caminho para que me encaminhava.
Quando desapareceu e quando me perdi?

Vou às cegas como um invisual até essa palavra
que me indicaria o caminho da minha casa.

No meio do país de névoa que se chama eu
há um sinal sem caminho que me assusta.


Fra hjertets krater, 1964


Versão minha - © Amadeu Baptista

Inger Hagerup (1905-1985). Nasceu em Bergen. Durante a ocupação alemã, refugiou-se na Suécia. Depois da guerra, foi crítico literário do jornal comunista Friheten. Escreveu também teatro e a sua poesia para crianças é muito conhecida. Traduziu Emily Dickinson.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Mais 12 Fragmentos de Veneza



Uvas negras deram lugar a este valpolicela que alegrou as nossas
libações nocturnas – mas não precisávamos de vinho para flutuar
em Veneza.


Os ladrões do imprevisto são uns rapazes que com berros
hidrópicos chegam a Veneza para agregar o tumulto ao infinito.
E assim é que Veneza a lua lhes entrega, para suprir mais furtos.


A treva bruxuleante,
a negra pupila dos teus olhos.


Apoucados que estamos pela libido
torcemos o coração até não poder mais.
De loggia em loggia e de espelho em espelho
vamos a procurar a beleza que, afinal,
está diante de nós a arrebatar-nos.
Fascina-nos esta luz sobre a paisagem,
a turva luz que faz dos vaticínios
o sonho (non sequitur) em que não acreditamos,
mas faz de nós pessoas transbordantes.


Ainda não aprendi a ver, ainda não aprendi
do mundo senão as profundas fissuras, os reflexos, a voz
hirsuta do mar, as casas, os cães, os cegos
que impõem as mãos sobre clarões para poderem ver.
Mas não subscrevo qualquer plano para salvar Veneza,
por saber que é impossível salvar a salvação.


A única vanguarda que me interessa é a vanguarda
do vento – por ele venho à estátua apreender
as formas sobre o mármore e a estranheza
com que o informe partilha a dádiva com a dúvida
para que fique a vida presa por um fio de chuva.


Depois dos turistas japoneses, chegaram os turistas alemães
com os seus relinchos desmesurados pelas ruas. Não sei se a despropósito
lembraste Carlos de Habsburgo, rei de Espanha e Imperador
do Sacro Império Romano-Germânico, que ao seu séquito muitas vezes
comentava: «falo castelhano com Deus, italiano
com as mulheres, francês com os homens
e alemão com o meu cavalo».


A afundar-se nas águas vinte e três centímetros por século
não tarda que Veneza pertença ao reino da Atlântida
– fascínios há a que se não escapa nunca.


Não sabemos os nomes de todos os que lograram exercer o poder sobre Veneza,
mas sabemos os nomes que já teve Veneza: Heneti, Veinziani,
Venecia, Veneciae, Venegia, Venegia, Venessia, Veneti, Venetia,
Venetiae, Venetici, Venetie, Venettia, Venexia, Venezia, Veniesia,
Veniexia, Venitiano.


A poesia: uma onda que morre na praia e outra
que nem à praia chega.

Digo que não há outro modo de pressentir a transparência
senão a partir de um coração transparente
na transparente Veneza – o mais é
a desconhecida transparência renitente
que o bravio Adriático retém nos dias claros.


Com um borsalino castanho escuro passou por nós Joseph Brodsky,
recém-chegado do sestiere de Cannaregio, perto da estação.
Por um túnel de nebbia se sumiu, quem sabe se a cismar
nalguma inefável mulher de Perugino de novo viva,
ou em como a água é o tempo que não cessa, primeira marca
e última.

Inédito - © Amadeu Baptista

                                                                                                Foto - © Pedro Amaral

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Hjalmar Gullberg


                                             POEMAS DE HJALMAR GULLBERG


VIRTUOSO

Aconteceu em algum lugar na metade de um tempo. Do seu violino
surgia o tema com esse timbre que era o seu segredo e ninguém podia imitar.
Então ocorreu que a corda com um estremeção se partiu em dois.
Só se ouviu um pequeno golpe seco.
Mas ele prosseguiu como se nada se tivesse passado, e de uma corda mais baixa
o arco foi obrigando a sair os tens aflautados
que críamos só poderiam tirar-se milagrosamente da corda mais aguda.
E quando tudo acabado e a torrente de aplausos encheu o salão,
a maioria sabia unicamente
que tudo se havia desenrolado com normalidade, como tem que ser.

Sonat, 1929



PENSO IR-ME NUMA LONGA VIAGEM

Penso ir-me numa longa viagem,
provavelmente tardará muito a que nos voltemos a ver.
Não é uma decisão precipitada, amadureci o plano durante muito tempo,
ainda que não tenha podido falar abertamente até agora.

Juntei uma grande quantidade de detalhes relacionados com a viagem,
preparei tudo excepto o itinerário:
aonde me levará finalmente, isso tratarei de ir descobrindo
a pouco e pouco.
Parto em busca de algo em mim mesmo que nunca encontrei aqui.
Parece que me chamam da distância, lá quero ir.
Creio-me capaz de afrontar um bom número de dificuldades para
chegar à minha meta.
Sinto um grande alívio no coração, desvaneceu-se o grande peso
que me oprimia o peito.
É como se uma grande alegria me esperasse em alguma parte.

Sonat, 1929



ARTE POÉTICA

I

Assim como quando uma pedra,
uma simples pedra banal
que atiraste ao lago, se afunda e desaparece no fundo,

sobe à superfície
uma onda vibrante e em à sua volta
se forma uma séria de círculos
que se vão estendendo em silêncio ao redor do centro submerso:

assim queria eu a minha canção,
assim queria que caísse na tua alma
a minha modesta canção!

II
Para que acrediteis um estilo
não basta
nem desenterrar uns quantos vocábulos adequados de um dicionário
nem retirar o seu idioma de um singular vocabulário.

Não, só vocês mesmos, do vosso mais profundo interior,
senhoras e senhores, poderão retirar
a originalidade capaz de encher com um sentido completamente novo
os pronomes pessoais e as formas dos verbos mais correntes.

Um verso de algum salmo antigo que todos conhecem
ou o texto de alguma canção popular que todos conhecem:
aí têm algo que aprender
no tocante à questão de fazer-se entender com a poesia.

E se algum dia tomassem como modelo dos seus versos a notícia
                                               de jornal bem escrita,
talvez enganassem os que não haviam notado a intenção
                                               para que se escutasse um pouco
o que vocês tivessem a dizer
sobre a eternidade e o mundo interior.

Sonat, 1929



ÊXTASE

Então o nosso corpo terreno
já não nos obstaculizará nem molestará.
Silencioso no vestíbulo está junto à moldura do espelho
o empregado do vestiário que liberta
o senhor e a senhora dos pesados casacos.

Enquanto ele vai colocando em cinco estantes
olhos, ouvidos, língua, nariz, pele,
está a nossa alma em oração e assombro.
Brilham estrelas na rotunda azul,
onde finalmente vamos encontrar Deus.

Andliga övningar, 1932



EU CRIA NUM DEUS

Eu cria num deus mas ele não o sabia,
nunca chegou a saber que eu cria nele
muitos anos após a sua morte.
Num profundo interrogatório comigo mesmo sobre o assunto
fiquei informado da verdadeira situação.
Oh, luz de estrelas apagadas que chega com atraso
aos olhos na noite! Eu contemplei ao meu deus
tal como era em sua glória antes da catástrofe.
Nunca chegou a saber que eu cria nele
e que não sabia que ele estava morto.

Dödsmask och lustgård, 1952


MÁSCARA MORTUÁRIA

Os olhos apagados, a boca rígida
e ele tristemente esvaziado em gesso das bochechas em molde…
Com cuidado e delicadeza levantaram as tuas mãos
do meu rosto o que cria que era o meu rosto.
Protestei não me toques!
Por que andas dedilhando a um morto as cavidades dos olhos,
deixa o meu rosto em paz.
Audazes de compaixão, as tuas mãos,
sem tremer, lenta e metodicamente ergueram
do meu rosto o que eu cria que era o meu rosto,
                                           o abalo dos anos da minha solidão,
                                  a minha máscara mortuária de lágrimas geladas.


Dödsmask och lustgård, 1952



NO CEMITÉRIO DE LEMNHULT

Aqui jaz o camponês Johan Magnusson
construtor de vinte e três órgãos na diocese de Växjö.
Em vida encontrava a suprema calma junto à corrente do moinho
nas tarde de verão. Elogiava a natureza
em versos rimados, um modesto aluno
do Senhor Bispo. Também sabia fazer pigmentos
e em consequência de uma humilde proposta desta paróquia
recebeu uma medalha real pela sua pintura.
Tinha aprendido com Hörberg e do seu amigo Marcus Larsson,
o incomparável pintor dos regatos cristalinos
e muitos sustêm que na igreja de Skirö
o seu retábulo, hoje trasladado, supera amplamente
o novo, pintado pela esposa do pároco.

Nascidas para o trabalho quotidiano nos bosques e nos campos
as mãos de um camponês – por que foram eleitas?
Quem investiga por que foram eleitas?
Quando a cor do céu precisou de novos instrumentos
para mostrarem maior volume e limpeza em Småland
confiou-se essa tarefa a Johan Magnusson.
Foi ele quem encontrou o harmónio para os salmos
em que se interpretaram grande quantidade de melodias cristãs
nas escolas em prol da piedade das crianças,
e todos os anos na praça de Växjö durante a feira de Sigfrid
havia um jornaleiro a vender as suas caixas de música.
Mas na plenitude da sua vida, aos quarenta e dois anos,
o autodidacta terminou um dos seus maiores instrumentos
de que ele, o poeta, costumava dizer:
O órgão pode dizer ao coração o que não conseguem as palavras. –
E Johann Sebastian Bach fez a sua entrada em Kråksmåla.

Aqui em Lemnhult realizou a sua última obra.
Cartas anónimas de leitores do diário Triaden
tinham exigido que o sapateiro se dedicasse aos seus sapatos;
mas essa frase, por certo, vê-a melhor um construtor de órgãos
que o diz a obra aplaudida de um mestre.

Durante o curso do trabalho melhorou o provedor
com imaginativos inventos as suas criações
e o organista da Catedral escreveu após uma inspecção
que a arte das suas mãos era mais do que ofício com que ganhar a vida.
Tão pronto quanto o seu patrono no seu quarto de trabalho
entoava Fugata, Principal, Fleur d’amour,
tinham que suspender-se todas as tarefas da propriedade de Nässja
– nada devia molestá-lo excepto o canto do regato.
A prazo isso não foi bom para a agricultura.
O que constrói um órgão para a glória de Deus
deixa que os seus campos se arruínem.

Em dioceses longínquas
encontraram sustento os sucessores do multifacetado camponês.
Dos seus órgãos conservam-se alguns
após cem anos. Um soa em mim.


Dödsmask och lustgård, 1952


APENAS AS PALAVRAS EXACTAS

Apenas as palavras exactas,
palavras com folhagem e trinar
de pássaros têm sombra como as árvores.

Sombra refrescante em que fechar
os olhos, enquanto a folhagem
canta as palavras exactas.

Ögon, läppar, 1959



OLHOS, LÁBIOS

Olhos que contemplastes, grande
de assombro e íntimos.

Lágrimas que recolher. Beijos que perder.
Lábios que sabem e podem calar.

Ögon, läppar, 1959




Versão minha - © Amadeu Baptista






Hjalmar Gullberg (1894-1965) Nasceu em Malmö. Licenciado em Letras.
Estreou-se em 1927. Logo desde o início transforma-se num dos poetas mais populares do país. O seu trabalho como jornalista e director de programas dramáticos da Rádio Suécia dá-lhe um lugar destacado na vida cultural sueca. Tradutor, verteu para sueco a poesia de São João da Cruz, Lorca, Gabriela Mistral e Juan Ramón Jimenez. Foi membro da Academia Sueca desde 1940.