quinta-feira, 27 de junho de 2013

GREVE GERAL


SAÚDO O SOL, A INDIGNAÇÃO, A GREVE GERAL DOS TRABALHADORES PORTUGUESES!

CONTRA OS MENTECAPTOS QUE NOS GOVERNAM, CONTRA OS VERMES E OS ABUTRES QUE NOS QUEREM ESCRAVIZAR!!!

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Henrik Nordbrandt



POEMAS DE  HENRIK NORDBRANDT


TÚMULOS DE SOLDADOS ALEMÃES

Agora os esqueletos estão ao ar
na fronteira entre o húmus e a argila, como corações
fendidos nas feridas abertas. se no entanto

pulsam, ouvi-los-ão apenas os coxos
os cegos coxos e as larvas de insectos
que dormem o seu sono invernal.

e por causa do teu diário, Querida
menciono que o sol se está a pôr. outubro,
caem as folhas, dirias, como uma suave marcha fúnebre.

mas há também outro som. de terra
depositada na terra, uma caixa de ressonância de terra
colocada em círculos de terra. os cérebros que nada compreenderam

converteram-se nas suas próprias respostas. da confiança:
uma ténue carapaça de osso
separa-nos da metafísica.

Miniaturer, 1967


A CHINA CONTEMPLADA ATARAVÉS DE UM AGUACEIRO GREGO NUM CAFÉ TURCO

o chuvisco
cai no meu café
até que o arrefece
e se derrama
até que o espalha
e o aclara
de modo que aparece
a imagem do fundo.

a imagem de um homem
com barba comprida
na China, diante de um pavilhão chinês
sob a chuva, uma chuva torrencial
que coalhou
em listras
sobre a fachada açoitada pelo vento
e na cara do homem.

sob o café, o leite e o açúcar
que estão a ponto de separar-se
sob o gasto esmalte
os olhos parecem apagados
ou virados para dentro
para a China, na porcelana da chávena
a chávena que lentamente se esvazia de café
e se enche de chuva
chuva clara. a chuva da primavera

pulveriza-se sobre o letreiro da taverna
as fachadas do outro lado da rua
assemelham-se a um grande
muro de porcelana muito gasto
cujo clarão atravessa as folhas de videira
folhas de videira que também estão gastas
como se dentro de uma chávena. o chinês
vê aparecer o sol através de uma folha verde
que caiu na chávena.

a chávena cujo conteúdo
agora está completamente transparente

Syvsoverne, 1969



ESTADO DE EXCEPÇÃO

Tudo no seu lugar:

A mesa no seu lugar e a janela
e a luz da tarde
que entre pela janela
num ângulo determinado
no seu lugar sobre o tabuleiro da mesa.
E o papel sobre a mesa
no seu lugar à luz da tarde.
E as palavras sobre o papel

no seu lugar no contexto.
E os lugares vazios
no seu lugar entre os ocupados.
E a luz da tarde

no seu lugar nos lugares vazios

aqui em finais do verão…

Omgivelser, 1972



NUMA ALDEIA DA ÁSIA


Que difícil nomear as coisas
  na ordem correcta:

Os muros de barro rachados que se deixam ver
            por trás dos pessegueiros em flor
                                   a hora da oração vespertina
quando alguém desce das montanhas do Este
            e o som das vozes infantis, que se calam de súbito
no bosque de bambu de ambos os lados do caminho

Que difícil dizer
  qual das coisas chega primeiro…
Os pessegueiros em flor a luz do sol
  ou o viajante que desce das montanhas do Este.

A canção, ou as coisas
            que a obrigam a ser cantada.

Omgivelser, 1972



ÀS VEZES

Às vezes umas poucas coisas fazem-nos felizes
                        sem motivo:

O amolgado balde de lata em plena chuva primaveril
                        sob a cerejeira em flor
precisamente antes de começas a clarear.
                        Ou as garrafas de vinho tinto
que atiramos pela janela durante a noite
            logo depois de…

E às vezes as mesmas coisas fazem-nos infelizes
            pelo mesmo motivo.

Omgivelser, 1972



DESEMBARQUE

Após tantas viagens inúteis, depois de tantas tentativas de fuga
sem saber exactamente o que era o que eu procurava
sem convicção, sem carta marítima e transportado por barcos que se
            afundavam
depois de ter descrito as coisas que vi, uma e outra vez
tantas vezes, que já deixaram de existir excepto como palavras
– depois de tantas frases vazias e tantas mentiras desnecessárias
de repente volto a viver cada palavra como uma declaração de amor.

E adoro cada palavra porque me obriga a cantar
da mesma maneira que cantamos as tempestades no mar
porque nos obriga a rendermo-nos perante elas e a procurar refúgio
em tantos portos desconhecidos, em tantas ilhas encantadas.
Adoro as cidades onde fomos maltratados, pelo seu nome
as azeitonas negras e o pão, e a palavra para vinho em sete idiomas.
Adoro os países que nunca vimos porque nos obrigaram a inventá-los.

Adoro a terra em chamas porque me obriga a dançar
e as minhas desgastadas máscaras porque me obrigam a rir.
Adoro a minha morte indiferente porque me obriga a viver.

Opbrud og ankomster, 1974



BACLAVA

Sinto-me incomodado em Atenas, em Istambul
tal como em Beirute. Lá as pessoas
parecem saber algo de mim
que eu jamais compreendi,
algo tentador e mortalmente perigoso
como a rua de túmulos submarinos
onde mergulhamos em busca de ânforas o verão passado
um segredo – a meias pressentido
como que espiado pelos olhares dos vendedores de rua
que de súbito me fazem penosamente
consciente do meu esqueleto. Como se as moedas de ouro
que as crianças me oferecem
tivessem sido roubadas do meu próprio túmulo
ontem à noite. E como se elas indiferentes
tivessem esmagado todos os ossos da minha cabeça
para as poder tirar. Como se
a torta que acabei de comer há um instante
tivesse sido adoçada com o meu próprio sangue.

Opbrud og ankomster, 1974



O NOSSO AMOR É COMO BIZÃNCIO

O nosso amor é como Bizâncio
tinha que ter sido
a última noite. Tinha que ter sido
imagino
um clarão nos rostos
daqueles que se juntavam nas ruas
ou formavam pequenos grupos
nas esquinas e nas praças
e falavam em voz baixa
tinha que ter recordado
o clarão que tem o teu rosto
quando pões o cabelo para trás
e me olhas.

Imagino que não falariam
muito e apenas de coisas
assaz insignificantes,
que tentariam falar
e se detivessem
sem ter chegado a dizer o que queriam
e o tentaram de novo
e o perderam de novo
e se olharam mutuamente
e baixaram o olhar.

Os ícones muito antigos, por exemplo
têm o mesmo clarão
que o flamífero clarão de uma cidade em chamas
ou o clarão que a morte anunciada
deixa na fotografia dos mortos prematuros
na recordação dos sobreviventes.

Quando me volto para ti
na cama, tenho a sensação
de entrar numa igreja
que foi queimada
há muito tempo
e onde só ficou
a escuridão nos olhos dos ícones
cheios das chamas que os aniquilaram.

Ode till blœksprutten, 1975



O mais triste do mundo
é uma vela de cera

a arder à luz do sol
uma manhã cedo

depois da noite de amor
que tão delicadamente iluminou.

Oh Deus, não permitas nunca
que o nosso amor chegue a ser assim.

Ode till blœksprutten, 1975



KONIA

Agora já me abrangeu, Oh Jalaleddin,
esse mar de amor de que tu falas.
Em três costas encontrou aquele a que chamo minha
o meu corpo, e eu fui ela, una e vazia.

N. do A. Konia: cidade (e província) da Anatólia Central; (Mawlana Jalaluddin Rumi) Jalaleddin é um mestre da poesia sufi.

Ode till blœksprutten, 1975




Na primavera construíram um hospital à minha volta
para que possa ter um quarto azul em que gritar.
Não sei quem são. Não sei que grito.
Só conheço as respostas, as respostas, as respostas…

Ode till blœksprutten, 1975


KASTELORIZO

Do mar do verão passado agora apenas resta
o reflexo do pôr-do-sol,
do reflexo apenas os rostos
e dos rostos apenas a tua espera.

N. do A.: Kastelorizo, pequena ilha grega do mar Egeu, cuja capital provincial tem também o mesmo nome.

Ode till blœksprutten, 1975



CONQUISTAR BIZÂNCIO

Às vezes, e de muito longe, tens que conquistar Bizâncio.
– Para expulsar o sangue bizantino das tuas veias
para te libertares tu mesmo dos teus membros bizantinos:
As asas cansadas, desdobradas, com as que em sinistros pesadelos
deslizas através de escabrosas sendas de montanhas e de túneis
todo o brilhante metal que carrega os teus braços de marfim
e perfumes, que devoram as pesadas pálpebras dos teus olhos.
Isso é Bizâncio, e tu tens que o conquistar para o dominar.

Conquistar Bizâncio é uma missão para sonhadores.
Só os sonhadores poderão eleger o momento oportuno
o instante entre noite e dia quando a cidade se esconda
na luz dourada, que torna invisíveis os sonhadores
e que reflectem as portas secretas, erguidas pelos sonhadores.
Só os sonhadores, no seu mais profundo sono, podem encontrar
    as aberturas
pelas quais o seu sangue anseia derramar-se
e o ouro, de que os seus membros anseiam ser libertados.


Às vezes, e de muito longe, tens que conquistar Bizâncio.
– Para puderes expulsar-te tu mesmo de Bizâncio
para te guiares em volta de ti mesmo com a ajuda das suas ruas
para te fazeres tu mesmo forasteiro perante os seus corpos estranhos
para te fazeres tu mesmo objecto das suas intrigas
para poderes arrancar o teu rosto dos seus ícones
para saborear os teus ossos com os seus túmulos desmoronados
Isso é Bizâncio, e tu tens que a conquistar para te libertares.


Glas, 1976



DIZEM QUE A ALMA NÃO EXISTE

Dizem que a alma não existe
mas quando vejo as marcas
que deixaste na minha
sei que existe:
beatas, manchas circulares dos vasos
papéis enrugados
marcas quase desvanecidas dos selos
e manchas de tinta
fazem invisível até o fantasma mais irreal ou o mais transparente
Como num escritório
onde alguém se tenha metido sub-repticiamente
a meio da noite
para compor um libelo contra Deus
ao clarão do reclame de néon da rua.

Violinbyggernes by, 1985


Versão minha - © Amadeu Baptista

Henrik Nordbrandt, nasceu em 1945. Estudou línguas orientais, chinês e turco, na Universidade de Copenhaga. Viajou por toda a Europa. Durante alguns anos viveu em Espanha e na Turquia. É tradutor de literatura turca. O seu livro de estreia, Digte, data de 1966, tendo publicado entretanto mais de 30 livros. Poeta e ensaísta. É um dos nomes mais reconhecidos da sua geração, tendo recebido vários prémios, entre os quais se conta o prémio Nórdico de Literatura, da academia sueca.

terça-feira, 25 de junho de 2013

O Bosque Cintilante # 82

Georges Bizet: Farandole, da Suite Arlesienne

 Estou ligado a um cabo de alta tensão.

Sou uma força da natureza.

(O anjo responde ao anjo.)


O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

sexta-feira, 21 de junho de 2013

José Luís Tavares





DOIS POEMAS INÉDITOS DE JOSÉ LUÍS TAVARES




28.
Olhas para lá das colinas,
e a idade é onda que vem,
profunda de extremo a extremo,
solene nome caindo assim opaca
em ti sozinho com a vida.
Mas vem no riso nascido na boca
do mais só, do que ganhou gosto
à fome de mais vida, sem jeito para
a melancolia nem para a vergonha
de chorar a dor dos outros.
A bem dizer, não te comovem os ademanes
metafísicos, ó criança sentada nas trevas
que protegem a infância, quando a febre
descia devagar como um dom celeste
à correnteza oculta das vidas subitamente
iluminadas.
Mas vês a demora nas mãos dos construtores,
esses que selam nas pedras os pactos com 
o tempo e um sinal de eternidade deixam
sobre as cabeças comovidas por essa paciência
que não cuida do azebre desenhando
as rosáceas da extinção,
porquanto olhando para lá das colinas
o que se vê é da ordem do puro pensamento,
da iluminação mais secreta – fundas paisagens
com seus perfis trementes, posto que 
o incomovível vento, que é caçador audaz,
uiva nos mastros erectos, entenebrece
nos esteios lavados pelas chuvas, 
mas tudo persiste 
entre queda e queda, no redemoinho de pó 
restituidor da perene pensada vida.



23.

                 (com joão vário)

Não te deram coroa alguma
para te medires com os da tua casta,
mas a pedra que conhece de antemão
o lugar da conveniência e aterra
sem o pavor da grandeza na funda
predestinada, posto que voracíssimo
é o ofício das parcas e mais esteios
não dispões tu que esse sal que preserva
a intensidade com que se amanha
esse ofício ambivalente.
E sob tal tecto vigias a calamidade,
pois para a continuidade não basta
o estrondo da exaltação, ó homem
dilacerado pelas indagações fatídicas,
habituada que a vida é à estreiteza
abnegada, à sua altiva orfandade,
sem o unguento do alívio ou qualquer
outro rumor reparador.
Estás só, medindo-te com a vara do teu
senso, e é deveras uma via estreitíssima
que não se abandona com a vinda
do escuro, pois muito esperaste pelas contas
do passado, pelos argutos conselhos
temperados de sagacidade; e ainda assim
só estás e continuarás no chão da semeadura,
e nada deves às sibilas imemoriais,
nem a coroa do espanto ou o favo
da coragem, que tudo é pedra talhada
com a abnegação que não prescinde da incerteza,
e para atravessar tal desígnio nenhuma estendida
meada existe – tudo é construção no ovo
da contingência, e quem por ti, quem por ti,
ó homem em duas metades repartido?


inéditos - © José Luís Tavares
 
 
 


terça-feira, 18 de junho de 2013

Eldrid Lunden



POEMAS DE ELDRID LUNDEN


LIVRE

Nas traseiras da minha casa
suspendem-se gritos de crianças,
na parte da frente
há um abismo negro
sobre a janela, a noite
é um negrume,
em mim
vive uma solitária
mulher branca.

f.eks.juli, 1968



SIM, CLARO

Sim, claro,
a minha cor favorita é
o preto.
A minha camisola diária é preta
e está tão puída
que o soutien ilumina
os rostos com que me cruzo.

Dois vestidos tenho
com o decotado
enxovalho
a felicidade,
com o subido ao pescoço
injurio
a morte.

Hoje vi-me ao espelho
já não me posso vestir de preto,
a ponto de que está de me dominar
o rosto.

f.eks.juli, 1968



Caminho por uma lenta terra
azul com uma brisa suave sobre
as mãos, a chuva abre-se e
fecha-se silenciosamente.

Um sinal branco, o
silencioso
movimento de um agasalho
claro que tornou e
entrou lentamente na praia.


Um sinal branco, o dia
o olhar, não
talvez não seja
nada,
passou com tal
rapidez.

Eu sou a Ana, tenho vinte e oito
anos, sou visível
no portal de casa todas as manhãs, um aberto
movimento no ar.

Sou a Ana, tenho vinte e oito
anos de idade. Penso cada vez mais
em que sou visível no portal
todas as manhãs, após o que me sento no carro.

Sou a Ana, tenho
uma mancha na língua
lá está uma palavra,
sei-o.

Grande silêncio paira no bosque
no outono, o olhar dela
é uma gota transparente sobre a pele.

Sou a Ana, sinto uma brisa
cada vez mais pesada sobre
a cabeça, peso cada vez menos
a cada dia que passa.

Uma manhã quando saía
a cor do ar aproximou-se
um pouco, no instante em que me volto
e fecho a porta, ouço
talvez, os travões
de um automóvel.

Jorros molhados na superfície, a nossa
pequena humidade grisalha, no mais exterior
dos poros.

Há muitas brilhantes
contradições no mar, hoje
são as rectas paralelas.

Sou a Ana, vejo
erva amarelecida junto das ribeiras, e pássaros
brancos como a tormenta.

Desço a flutuar pela estrada e a luz,
alguma coisa leve veio com a luz como uma
explosão contra um juízo, em seguida desaperto
a minha roupa e a luz sai aos borbotões
do meu corpo.

Estou na estrada, com
o vento fragilmente sobre
mim, tão simples.

Mammy, blue, 1977



Regressar deslizando, baixar
deslizando até ao seio
materno, a viscosa
chuva na mente,
a sensação de pontada
na água.

Mães que te seguram firmemente
na grande corrente
agarram-te pela garganta, por detrás
com um pequeno pescoço branco.

As sugadoras coxas das mães, como
esponjas no interior dos sentimentos.

As brutais coxas das mães, brandas & firmes,
dobrados sobre salários, impostos e a boa vida.

As ancestrais correntes
das mães, a escuridão fechada
em volta de humores esponjosos e o ar
penetrante do baixo ventre.

Imagens que nunca subirão à superfície
completamente, água que
não se limpa
lavando-a.

Vejo uma mulher que atirou os seus braços
ao rio. E as suas pernas. Está sentada
sobre um jornal na margem do rio,
a gesticular com a boca.

Escreveu na totalidade toda a vergonha da
sua vida com umas pinças, quer
usar uma linguagem completamente desavergonhada,

enlear a catarata, cuspir
na pedra do rio, dizer que nunca
esteve aqui.

Está a trabalhar agora com o azul, a água
coloca-se friamente
junto à pupila, o ar
está a fechar-se serenamente à volta de
uma mão.

Mammy, blue, 1977



A LUTA ENTRE O SENTIMENTO E A RAZÃO

A luta entre o sentimento e a razão
existe? Sim, existe
entre a razão débil
e o sentimento débil.

Tens medo de que se manifeste
o irracional em ti? Que apareça?
O irracional é todo
o extremo, visível em todas as partes.

Gjenkjennelsen, 1982


Versão minha - © Amadeu Baptista



Eldrid Lunden, nasceu Naustdal, em 1940. É poeta e ensaísta. Formadora criativa, influenciou as mais novas gerações de criadores noruegueses.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Björn Håkansson



POEMAS DE BJÖRN HÅKANSSON



O FUTURO

Alguém, uma pessoa que conhecia,
estava preocupado com o futuro.
Dizia-me que costumava ter terríveis pesadelos
Com que sonhas? perguntei-lhe
Sonho que tudo continua como antes
e que o que se transforma
se transforma de modo como tina podido prever
Não seria culpa tua nesse caso, respondi-lhe
Também essa resposta fazia parte do sonho, disse
Agora não há saída alguma
onde possa despertar

Rymd for ingenting, 1962



JESUS

Descuidadamente pregado estou
trato de me desentender da minha responsabilidade pelo futuro
Em verdade não fui suficientemente claro
Os zelotes acusavam-me de timorato
e os saduceus de loucura revolucionária
enquanto os romanos me tomavam por um zelote
que queria derrubar os estado
Eu aceito o estado, por agora,
à espera de se faça algo supérfluo
Aceito o sofrimento, por agora,
enquanto as armas apenas sejam cravos
Mas espero ter sido claro ao menos num ponto:
o poder de César não vem de Deus
e nós não somos maus.
É César quem nos consome, não nós,
são os seus caprichos que satisfazemos
incluso quando cremos actuar livremente
Com frequência confundimos mutuamente com ele
interrompemo-nos a meio de uma conversa e dizemos
friamente: a minha cabeça mantenho-a eu, muito obrigado–
não confundamos amabilidade com abnegação
Então escuta-se o obsessivo pulsar do seu coração
Tenhai cuidado, para que não fiqueis surdos por isso
Tenhai cuidado, para que não cuideis que é o vosso
Mas ninguém escuta; o tilintar das moedas enche
os ouvidos, a mais a mim que me dão por morto
Tenho de me convencer a mim mesmo para deixar de perguntar:
É acaso pecado a falta de clareza? Ou ainda mais
esclarecimentos fizeram de mim um maldito incompreendido?
O muro é branco como um muro com veias incrustadas
Discípulos e proclamadores, olhai para aqui. Tenho sede!
Fazei uma soma da minha situação
dai-me a vida eterna.

Kärlek i Vita Huset, 1967



DESTINATÁRIO: OLOF PALME

Querido companheiro de partido!
O produto nacional aumenta dia a dia
e os prédios de apartamentos surgem da terra.
Não nos queixamos, porque estamos bastante bem,
mas de vez em quando pomo-nos a pensar.
Agora, por exemplo, a Esso anuncia que procura cozinheiros e empregados de quarto
e criadas, mulheres de limpeza, recepcionista,
também massagista para a sauna, a tempo parcial,
e maquinista, com a missão concreta de cuidar
da piscina coberta. Há ginásio, bar
e locais para reuniões e congressos, ao que parece.
(Anexamos o anúncio.)
Congratulamo-nos, obviamente, pelos postos de trabalho
que graças à localização regional desta construção
nos contenta (ainda que a força de trabalho,
sobretudo na cozinha, seja italiana).
Gastos da construção: quatro milhões.
O jornal local fez uma magnífica reportagem.
(Anexamos o artigo).)
Não nos interpretes mal, somos socialistas leais.
Cremos pois
na necessidade de ter prioridades no sector social
e, em geral, das vantagens em fazer economias.
Cremos
nas vantagens da paz laboral e da solidariedade
entre as classes sociais, caso continuem a existir.
Cremos
que a colaboração com algum grande capital nacional
é a condição para uma óptima planificação de recursos
tendo em conta a actual estrutura da nossa sociedade
e a divisão do poder no campo da economia.
Mas perguntamo-nos, talvez pelos demais,
que talvez perguntem: quem decidiu, realmente,
que a Esso possa construir um hotel com semelhante envergadura
para viajantes comerciais e, no verão, para turistas,
enquanto nós, que vai para quatro anos vivemos em 1700 andares
e carecemos de sauna, praia, serviços, lojas, pub,
berçários, farmácia, banco, polidesportivo e locais
tanto para os nossos hobbys como para as nossas reuniões?
Há um quiosque junto à auto-estrada em que as crianças compram
chiclete com cromos coleccionáveis todos os dias
Agora perguntamos – e não o tomes de modo pessoal –
se tu ou o governo têm algo a ver
no plano de prioridades de serviços acima mencionado
ou se tudo continua a estar dirigido como sempre
dos Estados Unidos. Agradecendo-te antecipadamente a resposta
assinamos
                                   Quatro trabalhadores eleitores de Löten



Mellan två val, 1969


COM A MINHA FILHA

Em Novembro as sombras são
delicadas
como esqueletos infantis.
Desenham-se
sobre os vestígios da folhagem
carnosa do verão
Sob as árvores, junto ao muro,
estou com a minha filha
Ela assinala, eu respondo:
mejengra, gorrião, chapim-azul
A sua mão é tão frágil
que me dá vontade de a levar
à boca, de a beijar
e dizer: Não saias de ao pé de mim!
O mundo não é mais do que uma fina película
que apenas deixa que passe
o sol
Fica comigo
Aquece-me, para que a minha sombra
nunca tenha que encolher-se
dentro do frio.

Fronter i Tredje Världskriget, 1975



PARA A MINHA MULHER NO SEU ANIVERSÁRIO

O orvalho gelado deposita uma cintilação
sobre a erva
Os passarinhos esvoaçam com viveza
nos arbustos de bérberis
Uma mosca desesperada procura
uma abertura na janela
É outono
sem que haja dano como antes
Nas nossas conversas mencionamos
exemplos de filamentos
auréolas
e clareiras inesperadas
onde o bosque descansa
A rotina é um perigo
mas ninguém se queixa de que o coração
pulse regularmente
O hábito põe um selo
Se se quebra
a inspiração não terá sítio
onde dançar
O trabalho é o centro da família
Temo-nos um ao outro
mas se faltar o trabalho
não nos bastaremos
um ao outro
E não te queixes de que quase tudo
caia sobre o abismo.
Vento e água levam
os nossos fracassos
e depositam-nos
na boa terra.

Fronter i Tredje Världskriget, 1975



MONSTRO

Em Creta procuramos o labirinto
No labirinto procuramos o Minotauro
No Minotauro procuramo-nos sós
um ao outro
e quando encontramos o que procurávamos
e matamos o que não compreendíamos
começamos a procurar novos monstros
como se fosse uma saída
o perder.

Utanför familieboken, 1992

Versão minha - © Amadeu Baptista


Björn Håkansson, nasceu em Linköping, em 1937. Licenciado em Letras. Além de poesia escreveu romance e foi crítico literário em jornais e revistas. Poeta comprometido dos anos 60.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Portugal

SONETO EXPOSTO

Os desengonçados trânsitos cavernícolas.
A eterna crise com os dentes afiados.
Um país de paisagens marítimas e vinícolas,
em que uns são filhos e outros enteados.

O recorte da serra na distância.
Os pardais semoventes sobre as praças.
Alguns homens sombrios com a ânsia
de não serem roídos pelas traças.

O redil organizado como um caos.
Uns quantos menos bons e outros muito maus.
Uma planície, uma cidade, um chaparral.

E em volta disto o mar, sempre indiferente
do que queira ou não queira a sua gente.
E fica no soneto exposto Portugal.


© de Amadeu Baptista

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Prémio de Poesia Cidade de Ourense

Notícia do jornal Faro de Vigo, de hoje:

«El escritor portugués Amadeu Baptista ha sido el ganador del XXIX Premio de Poesía Cidade de Ourense por la obra Un pouco acima da miseria. El jurado lo califica como "un libro de excepcional personalidad. Una respiración poética amplia, un trabajo minucioso de lenguaje, que está en la base de una tensión poética intensa". Amadeu Baptista nació en Oporto en 1953. Cuenta con una amplia bibliografía. Colaborador habitual de periódicos, revistas, libros colectivos y antologías en diversos países de Europa y América.»

Para os amigos e visitantes deste blog deixo um poema do original 'Um pouco acima da miséria', que acaba de vencer a edição deste ano do Prémio de Poesia Cidade de Ourense e que conta, desde já, com a publicação da obra a concurso em Espanha:



MURMURAÇÃO DE LEÓN TROTSKY NO SEU LEITO DE MORTE

Natália Sedova, olha-me, peço-te que me olhes fixamente
– de mim não escutarás um único gemido, mas dir-te-ei
que a última flor do terrífico é a beleza, como te disse há muito,
como repetidas vezes te disse e agora repito neste meu último fôlego:
o terrífico é a beleza, tal como tudo é neve em nós,
de vitória em vitória, ou derrota em derrota,
ou um verso aterrador de Pushkin ou Maiakovski.

Não vês a revolução permanente neste trapo vermelho
enrolado à volta da minha cabeça, enquanto ponho
os olhos num infinito não muito distante?

Que te parece este exílio, estes dias luminosos de tequila e mezcal,
estes encontros com Frida, que de tudo fala como se pintasse,
enquanto tu cozinhas deliciosamente e eu escrevo sem parar
como se não haja em nós senão comoção?

Nesta cama, onde já só aguardo a morte,
porque é de morte que estou ferido,
não te parece que tudo em mim potencia a neve e o degelo
em contraponto à dor, esse axioma de múltiplos postulados
que a dialéctica acabará por resolver,
tal como resolverá a luta de classes?

Não te parece que, desde que o mundo é mundo, o mundo
é só mudança e que para a revolução revertem
todos os sacrifícios e todos os sonhos?

Não me viste a conduzir
os exércitos entre Kazen e a Ucrânia
e como, de acordo com Lenine, o encadeamento
das batalhas faz todo o sentido?

Deixa que olhe o tecto desta casa estranha e que veja o que vejo:
com certeza é mágoa o que diviso, mas, ainda assim, deixa
que veja um exército alucinado sempre em marcha, um exército
em busca de futuro, mesmo que não haja futuro, ou não haja
soldados quando a guerra terminar.

Deixa que sinta este arrepio a percorrer-me o corpo
como uma ventania poderosa que varresse a estepe
e nunca mais parasse,
e fizesse de mim um homem retemperado e livre.

Inquieta-te ou não te inquieta o esgar
que me modela o rosto, agora que a morte
penetrou o meu crânio e nada mais poderei fazer
do que sentir estas dores intratáveis e a ligadura
a encher-se de sangue, enquanto tu, Natália Sedova,
pões os olhos em mim e ouves comigo o riso longínquo de Estaline
a celebrar, não a morte de um inimigo de classe,
mas a classe de um inimigo – eu mesmo neste leito,
sem temor, sem pavor pelo fim, apaziguado
pela benignidade revolucionária de quem está a morrer?

Digo que é preciso acautelar as coisas, cada clarão, cada
gesto suspeito, e que não devemos confiar se alguém
se apresentar em nossa casa como sendo um amigo,
um amigo belga que não é belga, mas alguém insidioso
que quer ter uma história para contar, uma história
tremenda, a história do meu assassinato,
e quer frequentar a nossa intimidade para nos matar,
porque no Kremlin governa Estaline e, com ele, está a neve,
a neve implacável que sem tréguas nos persegue
e é um curso sangrento, entre sápatras e sequazes,
um curso de brancura que nos quer eliminar.

Creio na fuga, no exílio permanente.
Talvez a revolução seja isso, ter um inimigo
às costas e nunca lhe ver os olhos,
e ter de dormir com a eficácia de um fugitivo,
juntando as botas a um canto, e os filhos,
e toda a parafernália de pensamentos
que aliviem, ainda que por instantes,
o medo e o paroxismo de ser acossado
por uma mão invisível e omnipotente, uma mão
mais poderosa que a mão do acaso, ou a mão de Deus.

Abro a cigarreira e é neve o que encontro,
a caneta que uso é com neve que a encho,
e, quando escrevo, é neve o que alastra
no papel, neve a expandir-se sobre a terra,
enquanto a minha boca é neve que cospe,
a neve da proscrição, a neve da Sibéria,
da Turquia e da França, neve infinita
como a única amargura de quem não pode permanecer
em qualquer lugar que esteja e, em cada sombra,
apreende uma ameaça, em cada ruído, em cada
estalido das juntas de madeira da cama em que dorme.

O que digo é que uma sombra pode soterrar um homem,
uma sombra entre as sombras pode envenenar
a alma de um homem, e que as sombras são como a neve,
estendem-se à frente dos olhos e é como se a luz
favorecesse a ameaça, e fosse a revolução a  própria ameaça,
e nada mais houvesse que essa ameaça a perseguir-nos a cada instante
e em todos os lugares, de Kronstadt à Cidade do México,
de todos os lugares em que estive até todos os papéis que escrevi,
do mais simples panfleto até à sentença de morte de um desertor
ou de um burguês contra-revolucionário.

Creio na fuga, digo. Na fuga há uma tensão que favorece
o improviso, e a vida é isso mesmo, um improviso perpétuo
para sobreviver: junta-se um fio a outro, e outro a outro,
até que fica pronta a bagagem que essa corda
há-de prender –  nessa mala depomos tudo o que é nosso,
os livros que escrevemos, as mulheres que amamos,
as sombras que a nossa intimidade reconheceu
e a corda do improviso ata a esse passo decisivo,
a fuga que é preciso empreender porque as sombras, tal como a neve,
podem adquirir qualquer forma para quem é ameaçado,
a forma de um punhal, de uma pistola, de um copo
de veneno, de uma picareta de alpinista, de pontas aguçadas,
pronta a ser desferida sobre a nossa cabeça.

Digo que o exílio é como a neve, sempre e sempre
a adensar-se sobre nós, por mais que o fogo abrase,
ou nos incendeiem a casa, ou, no ímpeto da fuga,
passemos de um país a outro, e no novo país a que aportemos
tudo seja mais cálido, mais confiável, mais acolhedor.

Ah, mas o certo é que pomos um pedaço de neve no samovar,
preparamos o chá e a água fervente, o infusor de prata,
e é sempre neve o que bebemos, a neve perpétua
de nos querermos aquecer por dentro, a conhecer
o frio permanente de quem é acossado
e atrás de si pressente a perseguição implacável.

E os nevões sucederam-se, nevava em Alma Ata,
nevava nos contra-fortes dos montes Tien-Shan,
nevava em Prinkipo, a ilha predilecta da minha afeição,
onde ficou perdido o melhor cão que já tive,
nevava na Noruega – assim como nevou em todas
as casas do precário asilo que me foi permitido,
até mesmo aqui em Coyoacán, sobre a minha mesa de trabalho,
nestes lençóis, sobre a colecção de cactos que iniciei
para aquietar a fadiga da perseguição, da angústia, do desgosto.

Ah, Natália Sedova, está a nevar nesta cama e eu sei
que é o sangue que neva da minha cabeça que alaga as almofadas
e inunda o soalho e as tuas mãos, e que Rámon Mercader, a mando de Estaline,
conseguiu o queria, dar-me o golpe que a todos recompensa, por esta neve
infalível que sempre me acompanhou e me há-de levar
ao sepulcro e ao tempo futuro.


© de Amadeu Baptista