quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Os Selos da Lituânia / 11

11.
atrasei-me muito no caminho da escola
para casa porque o bosque
enfeitiçou os meus sentidos.
fiquei a olhar as pedras e as árvores
e a tocar o chão com as mãos para perceber
de que matéria a luz é feita ou como podem
certos pássaros voar, assim tão negros,
como se fossem o segredo que se encontra
entre o ágil e o fluido, a limpidez
e o abundantemente imponderável.
comigo ia a evanescência das coisas, o caminho
em que se decide tudo, a fonte de água
pura que os animais procuram, esse fumo
invisível que atravessa o coração
e nos há-de acompanhar durante a vida,
se à vida devolvermos claridade
pelo que vemos e ouvimos, esse frágil
rumor de mil cintilações à nossa volta.
caía a tarde célere e a noite próxima
fez-me despertar deste fascínio, o regresso
impunha-se e a inocência
poderia seguir num outro dia
o rastro que na tarde havia descoberto.
tinha que me apressar, ainda havia
uma longa distância a percorrer
entre as cintilações e a casa inatingível.
nunca tive uma relação pacífica
com a mulher que me criou. quando cheguei,
abriu-me a porta impacientemente,
pressenti-a nervosa e pude ler-lhe
uma infinita censura no rosto,
não bem pelo atraso com que vinha,
mas porque é mesmo assim a crueldade,
com aqueles traços finos de quem sabe
que há sempre castigo exemplar
para um miúdo de nove anos. em silêncio,
indicou-me a porta das traseiras e faz-me entrar
na garagem deserta àquela hora,
onde uma fila de garrafas e um monte de jornais
foram a fria testemunha de como pagaria
o facto de ter visto uma libélula
e perscrutado o vento. não me bateu
com as mãos, ou mesmo com um cinto,
mas com uma velha correia de borracha com arame dentro  
que estava ali abandonada de um arranjo
do carro, há já bastante tempo.
não verti uma lágrima.
nem disse uma palavra.
o bosque ainda hoje me extasia
e a esta mulher morta desejo
a terra leve.

in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista~




sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Os Selos da Lituânia / 10

10.
primeiro dia de aulas, nunca vi
tantas crianças juntas. tenho medo
deste desconhecido, onde paira no ar
um cheiro grave a ameaça e giz.
em casa, tentaram convencer-me
de que é bom saber escrever e ler,
mas só a perspectiva de ter que sair cedo
e de ficar fechado numa sala,
durante tanto tempo, dá-me volta
ao estômago e vomito ali mesmo.
não compreendo a azáfama desta gente
que se aglomera num corredor sombrio,
decorado com uns desenhos tristes
de cores muito desbotadas e plantas
cinzentas, que há meses
não devem ser regadas. as mães
acotovelam-se no exíguo espaço
e incitam-me a que vá ver o recreio
onde uma árvore raquítica sobressai
e um anexo em ruínas contém
dois lavatórios, um urinol colectivo
e três latrinas, de onde vem um odor
nauseabundo e em que é preciso
ficar acocorado para fazer o que é preciso.
de novo agoniado, alheio-me dos rapazes
que correm sem destino e das meninas
vestidas de lavado, sentadas nas escadas
contíguas ao refeitório, e volto para dentro,
onde ainda dura aquela confusão, sem nenhum sentido.
de súbito entrevejo a sala onde
decorrerão as aulas, um latifúndio
de quarenta carteiras com tinteiros
de louça branca, esbotenados
e sujos e um estrado descomunal com uma secretária
castanha picada do caruncho e uma cadeira
em frente ao quadro negro, ladeado
por duas fotografias emolduradas
que dominam o espaço, representando
um militar algo embaciado e um civil
seráfico de nariz adunco. entre as molduras
um crucifixo ostenta uma teia de aranha
que vai até ao tecto e nas paredes
repetem-se os desenhos que vi no corredor,
além de vários mapas de portugal continental
e das províncias ultramarinas pintalgados
pelas moscas e a reprodução de um homem
que muito simplesmente me apavora,
porque o desenho mostra como ele
é por dentro, com as vísceras à mostra,
o coração, o pâncreas, os dentes amarelos,
o fígado, o abdómen, a cerviz,
as veias, a boca entreaberta, a garganta, os brônquios,
a traqueia e outras atrocidades indizíveis,
como, por exemplo, não ter sexo. compungido,
peço para sair dali para fora, mas logo avisam
de que se me ponho a chorar é bem provável
que piore o meu estado. a senhora
directora detesta seres mimados
e usa facilmente a palmatória.
alheio-me daquilo, sem saber
o que fazer para ter paz.
começo a ficar tonto, com a cabeça
a andar à roda, como se o chão se abrisse
debaixo dos meus pés e nem sequer voar
me fosse permitido. manhã, manhã,
que a tua luz tão nítida me proteja.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Os Selos da Lituânia / 9

9.
a casa sobrepõe-se e confunde-se
com outras casas que já não conheço
ou conheço apenas se a memória
for de casa em casa procurar
alguns instantes que de todo se perderam.
aqui menti sobre o paradeiro
de um punhal que estava guardado
na gaveta de baixo do roupeiro.
ali apavorei-me pela sombra
que senti perseguir-me na cozinha,
onde numa tigela ainda fumega
o sangue de uma galinha degolada.
deste lado do muro reconheço
um homem louco mas apaziguado
pelas árvores em redor e o rio, ao fundo,
que corre pelo mundo até ao cabedelo.
além está uma cigana a ler a sina
e as criadas da casa assimilam
o oráculo das palavras como sendo
uma lei peremptória que se ergue.
nesta despensa obscura cheira a fruta
e há uma gata preta que fez ninho
sobre os sacos de cimento amontoados
entre toda a espécie de acessórios para a pesca
e latas de diluente e gasolina
e caixas com sementes e um ancinho.
pela janela aberta deste quarto
entrou a trepadeira florida
e deste lado da cama o enfermeiro
fez o curativo a uma criança
que rasgou os joelhos e passa aqui as tardes
enquanto a mãe não arranja trabalho
e o pai continua detido na polícia
política por actividades ditas subversivas.
a este espaço só vimos pela páscoa.
no centro desta sala há uma mesinha
com uma garrafa de vinho fino já aberta
e biscoitos sortidos que se guardam
numa caixa prateada forrada com um pano
bordado a fio de ouro, igual aos paramentos
que o senhor padre enverga.
a família reúne-se e ajoelha
muito compenetrada do momento
e eu fascino-me pela cruz e o menino jesus
que cada um de nós tem que beijar no pé.
aqui espreitei pela fechadura
e vi a mulher nua e o luís
esconder num lenço azul a hemoptise,
procurando refúgio na varanda
para que o não pudessem ver naquele estado.
ali abri um baú com meadas de renda cor de rosa
com um odor intenso a cânfora, que me extasia,
por aquele cheiro lembrar o cobertor
de lã em que dormi certa noite de grande tempestade
com trovões e relâmpagos formidáveis.
no patamar de paredes brancas
dei o meu primeiro beijo, pela primeira vez fumei
e vi o mar inamovível atravessar o inverno,
quando a terra tremia e toda a infância
enchia até ao tecto a casa
e um denso mistério ampliava
os recantos do sótão com os uivos indizíveis
dos cães da vizinhança. ah, as casas,
as casas sobrepõem-se e confundem-se,
as casas que habitei e que me habitam,
de onde olho fixamente para fora
para que a demolição se suspenda
ou tenha início.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Vitor Silva Tavares


Morreu o meu amigo Vitor Silva Tavares e estou muito triste.






Vitor Silva Tavares, 1937 - 2015

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Os Selos da Lituânia / 8

8.
do pomar de limões da casa ao lado
desprende-se uma fragrância inebriante
que invade as ruas circundantes
e se nota ainda no largo do viriato.
pelo estreito postigo do vestíbulo
surpreendo-me a observar aqueles metros
de terra onde a luz refunde noutra luz
as formas arredondadas dos frutos
que se assemelham à lua em quarto-crescente.
além dos limoeiros, junto ao muro,
cresce uma madressilva,
de onde vem um delicado aroma que transmite
um vínculo a uma origem que não julgo
poder descrever com eficácia
aos meus filhos, por culpa minha, creio.
outros sinais lhes hão-de revelar
a frágil ascendência de que venho
e outras marcas haverá para entender
o inverosímil pretexto que me fez
indagar assim as árvores e a brisa que as percorre
hoje ou ontem, alguma vez, outrora,
sabendo que catástrofe contamina
com feroz galope a beleza
e só a memória pode alguma coisa
entre a cisão e o limite.
morria a tarde, vinha o crepúsculo e a noite,
e eu continuava a ver nesse quintal
a índole de um mistério inexplicável
que como um plano de incandescências breves
constituía o meu lugar no mundo,
a minha descoberta do que havia
de ter como meu, para além de o descobrir.
era verão, chegavam em cardumes
pequenas aves, a escuridão
abria as sombras de uma sombra
nesse espaço remoto onde me lembro
de silenciosamente perscrutar
uma coruja ou uma cobra de água,
uma estrela de papel ou um pirilampo, o arco-íris,
um homem e uma mulher a transpor o muro
para perante os meus olhos ampliarem o fascínio,
dando início a um vendaval sem tréguas de volúpia
que era como se se matassem
ou morressem nesse incêndio,
enquanto recrudescia o odor a limões sobre a cidade
e o universo de repente enlouquecesse.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista





quinta-feira, 3 de setembro de 2015

DIES IRAE


Este é o tempo de pescar homens à mão.
Depois de Auschwitz e após setenta anos do fim da segunda
Guerra mundial, as criaturas morrem em balsas improváveis
No mar mediterrâneo ou acabam vitimadas

Nos camiões-frigoríficos das auto-estradas da Europa,
Famintas, esgotadas, enregeladas. Não sabemos
Quem somos neste tempo, o mais que somos
É refugiados da crueldade da guerra, e da sua miséria,

Da barbaridade que a desilusão do século XXI
Quis entregar-nos. Não há caminhos, montanhas,
Praias limpas. Na pólis da antiga Grécia não entravam
Mercadores e o paradoxo é que são agora os mercados que decidem

A nossa dor, a dor dos nossos coetâneos,
A dor universal de estarmos indefesos.
Tempos houve que se ergueram muros
Para evitar que as pessoas saíssem dos países,

Agora as barreiras são erguidas para que
Não entrem as pessoas nos países, essas vítimas
Que mais não fazem do que fugir da atrocidade
Com que as confrontam sob a ameça de serem

Espoliadas de tudo quanto têm e quanto são,
Sendo verdade que, mais cedo ou mais tarde, acabarão
Assassinadas em qualquer esquina de um campo por lavrar,
Ou numa estação de comboios em que não podem entrar.

Nada nos pertence quando a treva invade tudo,
A matéria da luz perde-se a cada instante,
Éramos os que tínhamos esperança e agora nada  somos,
A imbrincar silêncio sobre tudo, a tecer uma teia

De comércio de armas, de lavagem de dinheiro,
De custos cada vez mais elaborados no deve e haver
Das almas, cúmplices inconfessáveis dos dramas
Que não vemos, por mais que nos entrem pelos olhos dentro.

Ah, que chegue o dia da ira, que não haja salvação
Para os que nos condenaram. Não há caminhos, montanhas,
Praias limpas. A sordidez  ultrapassa qualquer realidade

E nem as lágrimas bastam, nem a cólera que não ousamos ter.


© do poema e da foto: Amadeu Baptista




quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Os Selos da Lituânia / 7

7.
já não me lembro se era inverno ou verão.
sei que o sol estava baixo e a sombra dos prédios
se alongava pelo rio e um último feixe de luz precipitava
o início de um crepúsculo de cores muito saturadas.
alguém veio chamar a minha ama
e ela levou-me pela mão como se houvesse
no ar o sinal de uma catástrofe
maior do que poderia pressentir.
só parámos em frente à entrada principal do palácio das sereias
de onde vi, ao longe, a carga policial
sobre os manifestantes que se aglomeravam no largo da alfândega.
de um lado havia gente em silêncio
e do outro guardas a cavalo.
dir-se-ia que apenas esperavam
o momento adequado para o impulso
de raiva que se lhes vislumbrava
estampada nos rostos. eu não sabia
o que não sabia existir. de súbito, senti
um nó na garganta
que apertava tanto que me fez doer
a nuca, os braços, as clavículas,
as pernas, os joelhos. a minha mão
na mão da minha ama, que senti tremer.
de súbito, provindo do silêncio
em que tudo decorria, sem prévio
aviso, ouvimos um estampido, e outro, e outro, ainda.
dos homens a cavalo, alguém puxara
de uma pistola e disparara sobre a multidão
silenciosa, que começou a gritar e a correr,
arremessando pedras sobre os guardas
de esporas nos cavalos, que espumavam
e levantavam as patas dianteiras.
nas janelas das casas vi
gente que levantava bandeiras negras
e vermelhas, outras brancas,
e apupava a polícia e clamava
palavras que até ali desconhecia
e aprendi, para sempre, serem
as mais essenciais para quem da vida
só espera a liberdade. do sítio de onde
estava, num relance, vi um homem
com sangue a escorrer do peito e da cabeça, estando muitos
caídos pelo chão, que os cavalos pisavam
e a quem os guardas batiam com bastões,
enquanto outros não paravam de correr,
procurando refúgio atrás das poucas árvores
e de alguns automóveis ali parados.
por essa altura, todo o meu corpo
se pôs em convulsões, acompanhando
os gritos que ainda hoje oiço
da infância.

in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ana Hatherly (8 de Maio de 1929 – 5 de Agosto de 2015)



Um poema de Ana Hatherly




Esta Gente / Essa Gente


O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha  dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

(in Calculador de Improbabilidades)

sábado, 1 de agosto de 2015

Os Selos da Lituânia / 6

6.
substituí  no coração o meu avô, que era barqueiro,
por este homem que morava no segundo andar
do prédio em frente. à porta, sobre uma coluna de madeira,
tinha uma begónia sempre florida e uma avenca,
e só me permitia entrar sob promessa
de estar calado e de, em caso algum, tocar em nada.
invejava-lhe a caneta azul-escuro montblanc, com aparo
de ouro, quase igual à que alguém me ofereceu
no último aniversário, e a caligrafia taquigráfica
que eu não sabia ler, mas admirava,
pelo negro brilhante a inscrever-se
no papel branco ou lilás que utilizava.
ele escrevia quase incessantemente.
à tarde recebia muita gente que trazia,
em pastas de couro muito velhas, inúmeros
documentos, áscuas de um mistério
absoluto. analisava tudo pormenorizadamente
e, com minúcia, anotava-os, sempre em busca
de um detalhe talvez inesperado e valioso, que o fazia
ir à procura em livros muito grossos
de coisas que ninguém mais entendia,
com os óculos de massa puxados para a testa
e um lápis viarco atrás da orelha. gostava imenso
de contar histórias, o que acontecia
quando estava bem disposto e se sentava
na poltrona forrada de veludo, ou porque os negócios
lhe corriam melhor do que esperara
ou o almoço estivesse para além das suas expectativas.
fazia uns cigarrinhos que fumava e deslumbrava-me
a extrema destreza com que punha
entre os dedos os fios de tabaco e os enrolava
na mortalha, molhando-a com saliva,
num movimento rápido dos lábios e da língua.
depois, ficava horas a desfiar aventuras em cima de aventuras,
que só tarde demais percebi que inventava
e nada tinham a ver com a sua própria história,
embora hoje ainda me espante como divagava
assim sobre tigres e leões sem os ter visto alguma vez
e as suas viagens não passassem 
de tristes itinerários entre os guindais e a cantareira.
falava sobre os vulcões da islândia e o mar de riga
com a familiaridade de quem lá tivesse vivido a vida inteira
e o seu olhar adensava-se sobre as coisas
como se nesse momento estivesse de partida.
havia dias em que estava deprimido
e mais para o fim, um dia, reparei
que secretamente observava
um volumoso conjunto de postais
de mulheres nuas que mais tarde
vim a encontrar reproduzidas numa edição
da forbiden erotika e o devem
ter aliviado do desalento de estar um homem velho
e muito fatigado deste mundo
que vale muito pouco para quem, como dizia,
já passou dos setenta e está casado
com uma megera há tantos anos
que só mesmo uma angina de peito faz sentido.
também para o fim, já não tolerava
mais nenhuma presença além da minha
e a de um gato siamês a que estimava
e dava lições de canto ao som de um disco
da callas, sempre o mesmo,
sempre na mesma faixa, durante tempos e tempos
infinitos. no dia em que se foi, jurei para mim mesmo
não mais entrar naquela dependência
e o faria não em sua memória mas em nome
do que me soube e quis ensinar com tanto afecto
e argúcia. é dele que preservo
os selos da lituânia.



in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista






quarta-feira, 15 de julho de 2015

Os Selos da Lituânia / 5

devo ter entrado duas ou três vezes nesta igreja
e fico sempre impressionado com a imagem
do cristo no altar-mor, uma figura cândida
que nos olha fixamente como se procurasse
a sua dor mais íntima. hoje, venho aqui
porque a minha avó morreu, depois de uma noite
de agonia na enfermaria do hospital geral de santo antónio,
durante a qual invectivou as trevas como sempre
a vi invectivar a terra, com os cabelos fartos
a ampliar-lhe os olhos e realçando-lhe os traços
de mulher trigueira. entrou agora o padre, e com ele
o meu pai, e mais duas pessoas que eu não conheço,
mas alguém me diz serem o meu tio e a minha tia,
que têm fama de ricos, por explorarem
um ferro-velho e uma gasolineira. pesaroso, o meu tio
não pára de exclamar “não somos mais que pó”
e a minha tia não diz nada, enquanto me sorri
e me afaga a cabeça, como se entre nós houvesse
confiança e não este desconhecimento
mútuo que nem sequer o sangue poderá
alguma vez superar. olho o meu pai
e também me molesta o que vejo, alguém
que me abandonou não tinha eu
mais que alguns meses.
aproxima-se e beija-me a face
e eu lanço um olhar ao cristo
que me retribui como se reconhecesse
aquele beijo de algum lugar. o ar está espesso
pelo cheiro das flores recém-cortadas dos altares
e o incenso queimado na missa do meio-dia.
chegam algumas mulheres e o sacristão
acende as velas, arrastando uma perna
e genuflectindo sempre que passa em frente
do sacrário. pode deus não estar em toda a parte,
mas apenas naquele refúgio derradeiro?
vindo da rua, há um barulho de vozes e motores
que me fazem lembrar porque ali estou
e impelem para o lugar onde o caixão se fixa.
em cada passo dado recuo no passado
e revejo aquela mulher ainda viva, um xaile
negro sobre os ombros a passear-me
pelas ruas do porto e a dizer a quem passa
que namora comigo, parando nas tabernas
para beber mais um copo e trautear
as canções em voga. morreu esta manhã,
com uma cirrose. nem foi preciso autópsia.
não tardará que a cidade a eclipse.


n Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista




segunda-feira, 6 de julho de 2015

Iannis Ritsos






HELENIDADE


I

Estas árvores não se acomodam senão ao céu,
estas pedras não se acomodam sob os passos estrangeiros,
estes rostos não se acomodam senão  ao sol,
estes corações não se acomodam mais do que à justiça.

    Esta paisagem é dura como o silêncio,
aperta no seu peito as suas pedras ardentes,
aperta à luz os seus órfãos olivais e vinhedos,
aperta as mandíbulas. Não há água. Apenas luz.
O caminho perde-se na luz, e a sombra da parede é de ferro,
petrificam-se as árvores, os rios e as vozes entre a cal do sol.
A raiz tropeça no mármore. Juncos pulverulentos.
A mula e a rocha. Ofegam. Não há água.
Todos têm sede. Há anos. Todos mastigam um bocado de céu
    acima da sua amargura.
Os seus olhos estão vermelhos pela insónia.
Uma profunda fenda encravada entre as suas sobrancelhas
como um cipreste entre dois montes no ocaso.

    A sua mão está presa ao fuzil,
o fuzil é a continuação da sua mão.
A sua mão é a continuação da sua alma –
têm nos lábios a ira
e têm a mágoa profunda – fundo nos seus olhos
como uma estrela numa cova de sal.
Quando apertam a mão, o sol vai seguro pelo mundo;
quando sorriem, uma jovem andorinha escapa das suas
    barbas selvagens;
quando dormem, doze estrelas caem pelos seus bolsos vazios;
quando se matam, a vida atira encosta acima bandeiras e tambores.
Tantos anos de fome, de sede, todos se matam acossados pela terra
    e o mar,
o mormaço comeu as suas terras e a água salobre regou as suas casas
o vento derrubou as suas portas e as escassas plantas da praça,
pelos buracos do seu abrigo entra e sai a morte
a sua língua é áspera como a pinha do cipreste,
morreram os seus cães envoltos nas suas sombras,
a chuva chocalha nos seus ossos.

Acima dos cumes fumegam petrificados o estrume a noite
vigiando o arquipélago enfurecido onde se afundou
o mastro quebrado da lua.

    Acabou-se o pão, acabaram-se as balas,
carregam agora os seus canhões apenas com o seu coração.
Tantos anos acossados por terra e por mar
todos têm fome, todos se matam e nenhum morreu –
nos cumes brilham os seus olhos.

Uma grande bandeira, uma grande fogueira toda vermelha
E a cada aurora milhares de pombas saem das suas mãos
Em direcção às quatro portas do horizonte.


II
Cada anoitecer com o chamuscado tomilho junto
    ao seio da pedra,
é uma gota de água que desde o passado escava o silêncio
    até à medula,
é um sino pendurado no velho carvalho que apregoa os anos.

Dormitam as chispas na cinza do deserto
e os telhados meditam no velo dourado sobre o lábio superior
    do mês da colheita
– velo amarelo como o grão de milho defumado pela pena do ocaso.

A virgem dorme sobre os mirtos com a sua saia larga
    manchada pelas uvas.
No caminho chora uma criança e responde-lhe do campo
    uma ovelha que perdeu os seus filhos.
Sombra na fonte. Gelado o barril.
A filha do ferreiro com os pés molhados.
Sobre a mesa o pão e a azeitona,
entre a parra o candil do luzeiro da tarde,
ali em cima, dando voltas no seu espeto, derrama perfume
a galáxia de gordura chamuscada, alho e pimenta.

    Ah! Que marco miliar de estrela fará todavia falta
para que bordem as agulhas de pinheiro sobre a parede
    tisnada do verão «e isto ocorrerá».

Quanto tem que verter ainda a mãe o seu coração
    sobre os sete valentes moços mortos
até que encontre a luz o seu caminho na encosta da alma!

    Este osso que sai da terra
está a medir com abraços a força, e as cordas do
    alaúde
e o alaúde desde o entardecer junto com o violino
    até à madrugada
cantam de pena em pena nos rosmaninhos e nos pinheiros
e tilintam as sogas nos barcos como cordas
e o marinheiro bebe amargo mar pelo copo de Ulisses.

    Ah! Quem fechará então esta entrada e que espada
    cortará o ânimo
e que chave te cerrará o coração que com as suas duas
    folhas abertas de par em par
olha para os pomares de Deus aspergidos de estrelas?

Grande momento como as tardes de sábado
    de maio na taberna marítima,
grande noite como bandeja na parede do funileiro,
grande canção como o pão na ceia do pescador de esponjas.
E vê como empreende o caminho pelas pedras
    a lua cretense
grap – grap com vinte filas de tachas nos grossos sapatos,
e vê aqueles que sobem e descem as escadarias de Anapli
enchendo o seu cachimbo de folhas de obscuridade cortadas
    toscamente
os seus bigodes de tomilho de Rumelia, orvalhado de estrelas
e os seus dentes raiz de pinheiro do penedo do Egeu e de sal.
Entraram no ferro e no fogo, falaram com as pedras
convidaram a morte a beber aguardente no crânio do seu avô,
sobre as próprias Eras encontraram-se com Digenis e puseram-se
    a jantar
partindo a meio a mágoa, tal como partiam sobre o joelho
    o seu pão de cevada.

Vem, Senhora, com as pestanas salgadas, com a mão
    branca enegrecida
da preocupação com o pobre e os longos anos –
o amor espera-te entre os matagais,
a gaivota no seu ninho sustem o teu negro ícone
e o amargo ouriço do mar beija a unha do teu pé.
Dentro da vulva negra do vinhedo muito vermelho
    coze o mosto,
coze o rododendro na mata incendiada,
dentro da terra a raiz do morto pede água
    para fazer brotar um abeto
e a mãe debaixo das suas rugas agarra fortemente
    a faca.
Vem, Senhora, que estás a incubar os ovos
     de ouro do trovão –
em que dia azul tirarás o véu e tomarás
    de novo as armas,
atingir-te-á forte o granizo de maio,
e explodirá como granada o sol sobre o teu avental
    de sarja,
e repartirás sol grão a grão aos teus doze órfãos,
e brilhará em volta o pântano como brilha o fio
    da espada e a neve de abril
e sairá da areia o caranguejo para apanhar sol
    e cruzar as suas pinças.


III

Neste lugar o céu não priva nem um instante o óleo
    do nosso olho
neste lugar o sol leva a metade da carga
    da pedra que levamos sobre os nossos ombros
partem-se as telhas sem queixa sob o joelho
    do meio-dia
os homens vão à frente das suas sombras como
    os delfins diante dos barcos de Skiatos
logo a sua sombra se converte em águia que tinge
    as suas asas de ocaso.
E mais tarde pousa nas suas cabeças e pensa nas estrelas
enquanto eles se estendem no descampado com a uva passa.

Neste lugar cada porta tem gravado um nome
    de uns três mil e outros tantos anos
cada pedra tem pintada um santo com olhos
    ferozes e cabelos de corda
cada homem tem gravada na sua mão
    de ponta a ponta uma sereia vermelha
cada rapariga tem um punhado de luz salgada sob a saia
e as crianças têm cinco e seis cruzinhas de amargura
    nos seus corações
como as pegadas das gaivotas sobre a areia
   à tarde.
Não é preciso recordar. Sabemo-lo.
Todos os caminhos conduzem às Altas Palestras.
    O ar é forte lá em cima.

Quando se desfia o mural minoico solitário do ocaso
e se apaga o incêndio  no palheiro da praia
as avós sobem até aqui pelos degraus talhados na rocha,
sentam-se na Grande Pedra fiando o mar com os olhos,
sentam-se e contam as estrelas como se
    contassem as facas, os garfos
e as colheres de prata herdadas dos seus antepassados
e mais tarde regressam para dar de comer aos netos
    a pólvora de Mesologui.

Sim, é verdade, Elcomeno tem duas mãos tristes
    entre o seu laço
mas a sua sobrancelha movimenta-se como a pedra que tenta
    soltar-se sobre o seu amargo olho.
Da profundida sobe esta onda que não sabe de rogos
do alto roda o vento com resina como veia
   e seiva como pulmão.

Ai! Soprará uma vez para arrastar as laranjas da recordação.
Ai! Soprará duas vezes para que saiam chispas
    da pedra de ferro como detonador.
Ai! Soprará três vezes e enlouquecerá os bosques
    de abetos de Liakoura.
Dará um murro para fazer saltar pelo ar a tirania
e retirará a argola da ursa nocturna e começará
    uma dança «tsámica» no meio do recinto,
e a lua a tocar pandeireta que se encham
    as varandas insulares
de crianças acordadas antes do tempo e de mães
    de Souli.

    Um mensageiro chega de Megali Langadia cada manhã
o seu rosto brilha a suar ao sol
sob o seu braço segura fortemente a helenidade
tal como um operário carrega o sobrolho dentro da igreja.
Chegou o momento, diz. Deveis estar preparados.
Cada momento é o nosso momento.


IV
Foram em frente pela madrugada com o desprezo
     do homem que tem fome,
dentro dos seus olhos imóveis caiu uma estrela,
levavam às costas o ferido Verão.
Por aqui passou um exército com bandeiras sobre a pele
com a obstinação presa entre os dentes como
     uma pera silvestre
com a areia da lua dentro das suas botas
e com o pó de carvão da noite colado dentro
    dos seus narizes e das suas orelhas.
De árvore em árvore, de pedra em pedra atravessaram o mundo,
com espinhos por almofada atravessaram o sonho.
Traziam a vida nas suas mãos secas como um rio.

    A cada passo ganhavam uma braçada de céu –  para o oferecer.
Nos cumes ficavam petrificados como árvores chamuscadas.
E quando dançavam na praça,
dentro das casas tremiam os tectos e telintavam os frascos
    nas prateleiras.

Ah! Que canção é está que estremeceu os picos dos montes –
nos seus joelhos estendiam as roupinhas da lua e jantavam,
e quebravam o ai entre as duas folhas do coração
como se esborrachassem uma pulga entre duas grossas unhas.
Quem te trará agora o pão quente pela noite para alimentar
    os sonhos?
Quem ficará à sombra da oliveira a acompanhar a cigarra
para que não se cale a cigarra,
agora que a cal do meio-dia está a iluminar a parede
    em volta do horizonte
apagando os seus sombrios nomes grandes?
Esta terra que exalava aroma pela madrugada
a terra que era deles e nossa – sangue deles –
    como cheirava a terra –
e agora de que modo fecharam a sua porta os nossos
    vinhedos
como se debilitou a luz sobre os telhados e das árvores
quem diria que se encontram metade debaixo
    da terra
e outra metade dentro das cadeias?

    Com tantas folhas o sol faz-te sinais, dá-te os bons-dias
Com tantos galhardetes brilhando ao céu
e estes nos cárceres e aqueles sob a terra.

   Cala-te, não tardarão, de súbito soarão os sinos.
Esta terra é sua e nossa.
Sob a terra, entre as suas mãos cruzadas
prendem a corda do sino – esperam o momento,
    não dormem,
esperam tocar a ressurreição.  Esta terra
é deles e nossa –ninguém no-la pode tirar.

V
Sentaram-se sob as oliveiras após o meio-dia
a peneirar  a luz cinzenta com os grossos dedos
retirando as cartucheiras e calculando quanto esforço
    pode caber no caminho da noite
quanta amargura no caule da malva silvestre,
quanto ânimo nos olhos do menino descalço que segurava
    a bandeira.

Ficou a destempo a última andorinha no campo,
equilibrava-se no ar como um negro cinturão na manga
    do Outono.
Nada restou. Apenas fumegavam as casas incendiadas.
Os demais deixaram-nos há tempo sob as pedras
com a sua camisa rota e o seu juramento escrito
    sobre a porta derrubada.
Ninguém chorou. Não havia tempo. Só o silêncio
    crescia muito.
E a luz no pântano estava organizada como a casa
    da morte.
Que será deles quando chegar a chuva dentro da terra
    com as folhas apodrecidas do carvalho
que será deles quando o sol ficar seco sobre a manta
   das nuvens como percevejos no leito camponês
quando estiver na chaminé do anoitecer embalsamada
    a cegonha da neve?
Deitam sal ao fogo as velhas mães, deitam terra
    nos seus cabelos
arrancam os seus vinhedos em Monemvasía não seja que
    adoce a boca do inimigo a vulva negra da uva,
puseram num saco os ossos dos seus antepassados
    juntamente com as colheres, os garfos e facas
e deambulam fora dos muros da sua terra a buscar
    lugar para deitar raízes na noite.

   Ser-nos-á difícil agora encontrar um idioma mais próximo
    do convite, menos forte, menos pétreo –
As mãos que ficaram nas terras ou sobre a montanha
    ou debaixo do mar, não esquecem –
ser-nos-á difícil esquecer as suas mãos
será difícil para as mãos que criaram calos por causa
    do gatilho do fuzil fazer perguntas a uma margarida
dizer obrigado sobre o seu joelho, sobre o livro
    ou dentro do mosto do céu estrelado.
Precisar-se-á de tempo. E temos que falar. Até que encontrem
    O seu pão e a sua justiça.
   
    Dois remos cravados na areia na madrugada
    com a tempestade. Onde está a barca?
Um arado cravado na terra, e o vento a soprar. Onde está
    o agricultor?
Cinza o olival, o vinhedo e a casa.
Noite cosida com cordel com as suas estrelas
   dentro de uma peúga.
Louro e orégão seco no armário embutido
    no muro. Não os tocou o fogo.
A onda esfumada no fogão – cozendo apenas a água
    dentro da casa fechada. Não lhes deu
    tempo de comer.
Na queimada folha da porta as veias do bosque –
    o sangue corre dentro das veias.
Eis aqui o conhecido passo. Quem é?
Conhecido passo com as tachas encosta acima.
O arrastar da raiz dentro da pedra. Alguém
   vem.
A senha, a contra-senha. Irmão. Bom-dia.
Encontrará, pois, a luz das suas árvores, encontrará
    também um dia a árvore o seu fruto.
O cantil do morto tem ainda água e luz.
Boa tarde, meu irmão. Sabe-lo. Boas tardes.
Na sua barraca vende bichos e sedalinas o velho ocaso.
Ninguém compra, partiram para cima.
É difícil que voltem.
Difícil também que digam os seus valores.

    Na era onde jantaram uma noite os moços
    valentes
restam os caroços de azeitona e o sangue seco da lua
e o decassílabo das suas armas.
No dia seguinte os pardais as migas do seu pão,
As crianças fizeram brinquedos com os fósforos
   com que acenderam os seus cigarros e com os espinhos
   das estrelas.
E da pedra onde se sentaram sob as oliveiras após
    o meio-dia em frente ao mar
amanhã far-se-á cal no forno.
E passado amanhã branquearemos as nossas casas
   e o escabelo de Haghia Sotira
e no dia seguinte plantaremos a semente alí
   onde dormiram
e de um grão de romã brotará o primeiro
    sorriso da criança
no seio do dia ensolarado.
E depois sentar-nos-emos na pedra para ler
    todo o seu coração
como se lêssemos pela primeira vez a história do mundo.


VI

Assim com o sol sobre o peito perante o mar
    encalhando a ladeira do dia.
Calcula-se em dobro e em triplo a reclusão
    e o martírio da sede
calcula-se desde o princípio a velha ferida
e o coração torra lentamente no calor
   como as telhas de Vatica diante das portas.
À distância as suas mãos assemelham-se cada vez
    mais à terra
à distância os seus olhos parecem-se mais com o céu.
Acabou o azeite na almotolia. Alguns passos
    pararam ao fundo. E o rato morreu.
Esgotou-se o ânimo da mãe junto com a barra
    de barro e da charca.
Desoladas as gengivas do deserto pela pólvora.

Aonde azeite agora para o candil de Santa Bárbara
aonde hortelã para incensar o ícone da tarde
aonde um pedaço de pão para passar a noite – mendiga
    a tocar o canto de estrelas com a lira.
No castelo do alto da ilha movimentaram-se as figueiras
    e os asfódelos.
A terra cavada pelos canhões e as tumbas.
O edifício do município derrubado remendado
    pelo céu. Não há já lugar
para mais mortos. Não tem lugar a tristeza
    para ficar a entrançar os seus cabelos.
Casas queimadas que olham com olhos vazios
    o mar petrificado
e as balas cravadas nos muros
como punhais nas costas do Santo que ataram ao cipreste.

    Todos os dias os mortos apanham sol de boca para cima.
E só ao anoitecer os soldados se arrastam com a beata
    entre as pedras enegrecidas
procurando respirar o ar fora da morte
procurando os sapatos da lua mastigando um pedaço
    de meia sola
golpeiam  com o punho a rocha não vá que a gota
    de água corra
mas do outro lado o muro está oco
e voltam a ouvir o golpe com as mesmas estrofes
que a bomba produz ao cair no mar
e ouvem uma vez mais o queixume dos feridos
   diante da entrada.
Para onde atirar? O teu irmão chama-te.
Em volta a noite erigida de sombras de barcos
    estrangeiros.
Fechando os caminhos pelas paredes.
Só para cima há ainda caminho.
E eles maldizem os barcos e apertam as mandíbulas
Para escutar a sua dor que não endureceu.
Nas ameias os capitães mortos permanecem de pé
    no castelo.
Sob a sua roupa a carne apodrece. Eh, irmão! Não
    te cansaste?
Floresceu a bala dentro do seu coração,
Cinco abrolhos brotaram nas axilas da árida rocha,
de fôlego em fôlego o perfume conta o conto –
    não te recordas?
dentada a dentada a ferida  conta-te a vida,
a camomila que cresce na sujidade da unha do dedo
    grande do teu pé
conta-te a beleza do mundo.

Agarras a mão. É tua. Empapada pelo salitre.
Teu o mar. Como se arrancasse um cabelo
    da cabeça do silêncio
goteja amargo o leite da figueira. Estejas onde
    estejas o céu observa-te.
Junta nos seus dedos a estrela da tarde a tua alma
    como um cigarro
para que a fumes deitado com a  boca para cima
molhando a tua mão esquerda no rio de estrelas
    a destra agarrada ao teu fuzil-noiva
para te lembrares que o céu nunca te esqueceu
enquanto vais retirando do bolso interior a sua velha
    carta
e vais desfraldando com os dedos a lua
lerás valor e glória.
Então subirás ao alto cume da tua ilha
e usando como munição uma estrela dispararás
    para o ar
por cima de muros e de mastros
por cima das montanhas que se inclinam como soldados
    feridos
assim simplesmente e só para gritar aos espectros
    que se escondem na manta da sombra –
disparas certeiro ao seio do céu para encontrar
    a pegada azul
como se encontrasses sobre a camisa o mamilo
que amanhã dará de mamar ao teu filho
como se encontrasses após anos o botão
    da entrada da casa dos teus pais.


VII

A casa, a rua, a figueira, as cascas do sol
    no pátio, as galinhas debicando-as.
Conhecemo-los, e conhecem-nos.  Aqui em baixo
    entre as silvas
deixou a serpente abandonada a sua camisa amarela.
Aqui em baixo está a cabana da formiga e a torre
    da esfinge com as inumeráveis ameias,
sobre a mesma oliveira a concha da cigarra
    do ano passado e a voz da cigarra deste ano,
os juncos e a tua sombra que te segue como um cão
     muito aflito e silencioso,
cão fiel – a todos os meios-dias senta-se ao lado
    do teu sonho da terra farejando as adelfas,
à noite enrola-se sobre os teus pés a olhar as estrelas.
É um silêncio de peras que crescem nas pernas
    do Verão
um sonho de água que observa as raízes da alfarrobeira
a Primavera tem três órfãos adormecidos no seu regaço
uma águia meio morta nos seus olhos
seca a ermida de Haghi-Ynni tou Nistefti
como excremento branco do gorrião numa larga
     folha de amoreira emurchecida pelo calor.
Este pastor envolto na sua peliça
tem em cada pêlo do seu corpo um rio seco
tem um bosque de carvalhos em cada buraco da sua flauta
 o seu cajado tem os mesmos nós que o remo
    que tocou pela primeira vez o azul do Helesponto.
Não é preciso que recordes. A veia do carvalho
    tem o teu sangue. E o asfódelo da ilha e a alcaparra.
O silencioso poço eleva depois do meio-dia
uma voz redonda de negro cristal e de vento branco
redonda com as velhas vasilhas – a mesma  voz ancestral.
A cada noite a lua dá a volta aos mortos
procura as suas caras com dedos gelados o seu filho
pelo forma do queixo e das sobrancelhas de pedra,
procura nos seus bolsos. Encontra sempre alguma coisa.
    Alguma coisa encontramos.
Uma chave, uma carta, um relógio parado nas sete.
    Damos corda
de novo ao relógio. Andam as horas.
Quando amanha se desfizerem as suas roupas e fiquem
    nus entre os seus botões militares,
como ficam os pedaços do céu entre as estrelas do Verão,
então poderemos encontrar o seu nome e gritar:
    Eu amo.
Então. Mas estas coisas são muito longínquas.
Estão como que muito próximas, como quando tomas
    na obscuridade uma mão e dizes boa tarde
com a amarga boa intenção da pessoa que faltou
    muito tempo fora da sua casa e volta à casa paterna,
e nem os seus o conhecem, porque conheceu a morte
e conheceu a vida antes da vida e por cima da morte
e as conhece. Não se zanga. Amanhã, diz. E está
    seguro
de que o caminho mais distante é o mais próximo
    do coração de Deus.
E no momento em que a lua lhe beija o pescoço
    com alguma tristeza,
sacudindo a cinza do seu cigarro  da grades
    da varanda, pode chorar com firmeza,
pode chorar pela firmeza das árvores e das estrelas
    e dos seus irmãos.

Atenas, 1945-1947



  Notas:
Digenis: Trata-se Digenis Akritis, herói do poema épico homónimo bizantino que remonta ao século XI ou XII.
Dança tsámica: dança tradicional grega, proveniente de e comum nas ilhas do sul do Peleponeso
Haghia Sotira: lugar da Argólida, célebre pela sua igreja arruinada.

Versão minha - © Amadeu Baptista








Iannos Ritsos nasceu na Grécia a 1 de Maio de 1909. Aderiu ao Partido Comunista Grego, em 1931. Publicou Tractor, em 1934, inspirado no futurismo de Maiakovski. Devido às suas ideias políticas, algumas das suas obras foram queimadas em público. Foi internado em vários campos de reabilitação. No entanto, a sua produção poética é imparável, com dezenas de títulos. Em 1956, é-lhe atribuído o prémio nacional de poesia pelo livro Sonata ao Luar. Conjuntamente com Giorgios Seferis e Odysseus Elytis, é considerado um dos mais importantes poetas gregos do século XX. Faleceu a 11 de Novembro de 1990.












sexta-feira, 3 de julho de 2015

Os Selos da Lituânia / 4

naquele tempo, a vida indescritível do quintal
sulcava no meu peito os mais profundos sortilégios.
os dias pareciam ser intermináveis e era possível
sentar-me numa pedra a ver correr as horas
num lento êxtase
pelos muitos planos que os muros fixavam
entre as várias escadarias e as sombras
de um extenso jardim de rosas e agapantos.
um dos cães da casa era um cão cego,
negro, com as patas brancas e castanhas,
que dormia num recanto entre alguns sacos
de carvão vegetal e guardava
as coisas num silêncio que sempre me pareceu
atroz, seguindo com a cabeça os ínfimos ruídos
que suspeitosamente à sua volta vinham
perturbar a prestação guardiã.
após as escadas e um corredor
sombrio havia um tanque de água cristalina
e um outro mais pequeno circundado
por tufos de avencas e de pássaros
entre o silêncio das plantas e da pérgula
onde inúmeras trepadeiras formavam
uma pequena selva, com flores cor de fogo,
de pétalas diáfanas, irradiando clarões
pela tarde dentro. num minúsculo barraco,
quase destruído, guardavam-se as alfaias
e a minha aventura era ampliar
a serventia daqueles instrumentos,
sendo um ancinho a imagem de um dragão,
um carrinho de mão um carro de combate
e uma pá o símile de uma espada
que numa antiga batalha me tivesse transformado
num herói  absolutamente incontestado.
uma ameixoeira branca ampliava o encantamento
do lugar. nas suas folhas entrevia brilhos
que pareciam chuva, embora não chovesse.
o que era irreal mostrava-se, de súbito,
a única custódia possível para os olhos.
havia também um largo patamar
onde as mulheres da família se sentavam
a coser os vestidos ou a bordar
uns panos que me pareciam asas de algum anjo
vagamundo, no lugar em que mãos ladinas
e cruéis matavam as galinhas para o domingo próximo,
enquanto o cão cego permanecia a um canto
com os olhos brilhantes,
como dois topázios.

n Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista